Saturday, December 24, 2005

NATAL

O Natal é uma ocasião, nem sempre boa, para presentear. Digo “nem sempre boa”, pois força a própria ocasião para tal. É o dia do presente generalizado, do presente gratuito. Gratuito porque você é obrigado a presentear, sem qualquer motivo, a não ser a própria data. E não porque encontramos o que seria perfeito para tal pessoa em um determinado momento e que, se deixasse passar, já não serviria mais. O Natal é a instituição do presente, o presente compulsório, assim como vários outros, prescritos por datas fixas e longe do movimento da vida.
Algumas pessoas até reclamam e dizem que o melhor presente é o imotivado. Aquele da ocasião de sua descoberta, que encontramos ao acaso, sem data pré-definida. O qual se encaixa perfeitamente nos desejos do felizardo. E que ainda tem um gostinho maior de surpresa, já que não era esperado, pois que é fora de data. O melhor presente é o fora de hora, desde que não seja o atrasado.
E há aquelas pessoas com a cultura de presentear. Alguns, mesmo não precisando de nada, querem ganhar presente. Outras (a maioria) sentem carências que presente nenhum irá preencher. Ou pelo menos os presentes que são possíveis de se ganhar rotineiramente. Estou, é claro, excluindo desta lista ganhar na loteria, casa própria, amor ou qualquer coisa que geralmente não cabe em um presente comum.
Ouvi também gente dizendo que Natal é para as crianças, que obrigação de dar presente pra adulto é um saco. E de fato, dar presente pra criança é a coisa mais divertida do mundo. As opções são inúmeras. E as crianças precisam mesmo ser presenteadas. Elas não tem o poder de ir lá e comprar tudo o que desejam ou precisam. Vivem uma carência constante: carência de não poder ir e vir, de geralmente não poder escolher por si mesmas e de ainda não serem senhoras de seus próprios impulsos e emoções. E aquilo que vem “engenhosamente” (assim elas o sentem) das mãos dos adultos é sempre bem-vindo. Ganhar presente é ganhar alguma coisa. O que, por si só, já é lucro. E isso tudo envolve um universo enorme de mitos e fábulas, sobre mundos repletos de personagens e coisas misteriosas e maravilhosas, cheias de alegria e superpoderes.
Saí para comprar alguns presentes para as crianças que amo e que fazem parte de minha vida. E aí nos damos ainda mais conta, sempre, de como o universo das crianças é imenso e fabuloso. É uma coisa incrível a criatividade que borbulha em tudo isso, nas estórias e nos brinquedos. E como o brinquedo precisa da estória e a estória muitas vezes vira brinquedo. Tudo é jogo e experimento. Tudo é transgressível, feito para ser recriado, violado de sua função original, de sua intocável sacralidade. Sem medo. Nada permanece sagrado nas mãos de uma criança... (a continuar)

Saturday, December 10, 2005

SERIEDADE E FALTA DE ESPÍRITO

Em minha tese de doutorado disse, de certa forma, de modo educado, elegante e sutil (ou seja, em formato acadêmico) que psicólogo não pode deixar de ser quem ele é. Autenticidade e espontaneidade responsáveis são talvez rincões privilegiados para a saúde mental, seja no plano do umbigo ou do rebanho. Sempre tive asco por psicólogos que fazem o tipo comedido, equilibrado. Sim, claro, algumas pessoas sempre foram assim.
Mas ninguém é tão sério assim. A seriedade, quando elevada a parâmetro primordial de tudo o que existe, é um atraso de vida. Não suporto gente séria, ou que se leva demais a sério. Trabalhar de modo engajado, envolver-se com alguém, amar, honrar compromissos, preocupar-se também com o bem-estar dos outros, não exclui o riso nem a auto-ironia. Digo “auto-ironia”, porque antes de sermos irônicos, devemos ser capazes de ironizar a nós mesmos. Ironia sem auto-ironia pode ser somente agressão.
Psicólogo que obedece ao estereótipo de resolvido (diga-se, excessivamente ponderado, discreto, sem graça) está perdendo a oportunidade de uma vida mais saudável. “É anti-ético”, disse uma vez um colega de profissão, bêbado. Concordo plenamente. Além de enquadrar sua própria existência na pobreza de espírito do estereótipo, tripudia, goza da cara de quem não é capaz de tal mediocridade e patologia.
Como diz uma colega minha que adora dançar e cantar sozinha, na rua ou em público: uma vida sem alegria não tem sentido. E talvez nem mesmo valha a pena. As pessoas que fazem o tipo sério demais, geralmente estão se escondendo, se defendendo.
E ainda, indiretamente, reprimem uma certa dose de abençoada e esclarecida loucura. Seriedade em excesso é burrice, dogmatismo. Não duvida de si mesmo, porque se leva demais a sério. E não satisfaz, oprime. Porque não dá férias ao pensamento, soltando a imaginação. Não transita. É sem movimento, sem graça. Não percebe que a vida também é jogo e faz-de-conta. Espirituoso é aquele que tem senso de humor ou que cultiva o espírito.
Seriedade demais é deixar o espírito morrer de fome.

Wednesday, December 07, 2005

CRIANÇAS


A tradição em casa era seguir o primogênito. Edu mandava. E Cako, o caçula, obedecia. Eu não. Assim vivi muito tempo no ostracismo. Edu e Cako eram um bloco, eu era outro. Também não havia a menor condição de eu ser o mestre de Cako. Quem faz fronteira não brinca em serviço. Faz guerra. E eu e Cako vivíamos em guerra. Jamais seria seu ídolo. Ela não queria ser engolido por um rival. Não sei se deu pra entender. Eu era o do meio. Disputava interesses tanto com o mais velho quanto com o mais novo. Minhas idolatrias ficavam reservadas para meus pais. Mas não era nada fácil viver espremido entre dois rivais.

Por outro lado, havia muitos e memoráveis momentos de união do trio. E Edu, claro, o mais velho, era sempre o mentor do que iria acontecer ao nosso mundo.

Éramos crianças do interior. Nascemos em uma Cohab. Casas com 30 metros quadrados. Mas era uma Cohab linda, toda arborizada, com jardins em frente às casas. Éramos pobres e bonitos. Meus dois irmãos, loirinhos e de olhos verdes. Dois bebês Johnson. Pareciam crianças de calendário. Uma pobreza colorida, alegre, romântica, sabe. E eu, no ostracismo. Olho claro, mas moreno. Era chamado de “preto”. Mas era um trio bem bonitinho, engraçadinho. Minha mãe sempre nos vestia com roupas iguais e cortes de cabelo meio beatles. Ficava meio circense, meio bonequinhos.

Parecia aquela banda de rock de um antigo desenho animado: “Os impossíveis”. Curly: o homem mola (Cako). Harry (?): o homem fluído (Edu). E Marlon (?): o Multihomem (eu). Paravam no meio de um show e viravam super-heróis, voando para o alto e gritando: "E Vamos Nós !!!". E o Multi-Homem sempre falava para o vilão: "Você pegou todos... menos o original !".

Para os três patetas, eu e Cako éramos os dois idiotas, os que faziam tudo errado. E Edu aquele que vinha pra botar ordem na casa. Papel de mais velho.

E éramos impossíveis mesmo. Edu estava com 10 anos, eu com 7 e meio e Cako com 6. Meu avô resolveu passar o sábado a tarde conosco na fazenda de seu antigo patrão, Dr. Quartim. Pegou seu fusquinha abacate 61. Isso foi em 1980. E lá fomos nós. “E Vamos Nós !!!", gritávamos na estrada, em uníssono. E dá-lhe aquelas tradicionais brigas no banco de trás. “A janela é minha...”. “Não, minha...”. E tome porrada.

Chegando lá, era um ambiente desconhecido. Edu, óbvio, pegou o comando do batalhão. Aí ele virava meu mestre. O que faríamos dessa vida sem o Edu? Isso era forte em nós. Tanto que Cako, há mais de oito anos, quando o Edu morreu, virou-se pra mim, colocou a mão em meu ombro, olhou fundo em meus olhos e disse: “Agora somos só nós dois, negão. Não vai mais ter Edu pra cuidar da gente não”.

E então Edu tomou a frente. Tudo o que ele dissésse, nós obedeceríamos. Afinal, éramos os dois idiotas dos três patetas, né verdade.

Chegamos na fazenda. E era linda, maravilhosa. Plantavam lírios. Inacreditável: havia um morro forrado de lírios, de todas as cores. Lindo, lindo. Cartão postal. E aqueles dois loirinhos e um moreninho, ficava mais calendário ainda. Copiava certinho o padrão de beleza europeu que o mundo todo compra.

Encontramos alguns pedaços de canos antena, de alumínio. Caniços de antena. Pareciam espadinhas. Ah, claro, não deu outra. A espadinha cortava lírio como em filme de samurai. Meu avô se distraiu um pouquinho. E quando chegamos lá em cima do morro. O que já havia ocorrido? Eu, Edu e Cako, abrimos uma estrada bem no meio do morro. Acho que decepamos milhões de lírios em questão de minutos. E, fora de brincadeira, gente. Edu olhou para o mundo que jazia a seus pés, como se tivesse acabado de desbravar o Everest. E em pose de mestre disse:

“O caminho se faz ao caminhar...”

Meu avô ficou louco.

Tuesday, November 22, 2005

Os loucos 4 (Loucos de rua)

Estava dando uma aula sobre movimento antimanicomial e diante do tema da tentativa de maior integração do doente na sociedade, não tive como não lembrar desses loucos que estão nas ruas. Não os que estão sem assistência, mas aqueles que, meio ao modo medieval, marcam presença em locais estratégicos da cidade. Seja em uma esquina movimentada ou mesmo perto de nossa casa. Talvez aquele vizinho doidão ou morador do bairro que chamava a atenção por sua excentricidade ou comportamentos mais bizarros.

Segundo as palavras de Lobosque (1997, p. 23), “‘fazer caber’ o louco na cultura é também ao mesmo tempo convidar a cultura a conviver com certa falta de cabimento, reinventando ela também seus limites”. Ou seja, a luta é por uma maior tolerância para as diferenças, mesmo que elas sejam meio espantosas, estranhas e talvez bizarras. Para que o louco não seja excluído, isolado, exterminado, deveríamos recuperar um certo espírito medieval em que os loucos estavam mais integrados à vida social.

Esse negócio de isolar louco só veio mesmo a ocorrer com vigor a partir da modernidade. Pois os loucos passaram a ser concebidos como uma ameaça a três valores que são os pilares do mundo moderno: razão, liberdade e individualidade. Além de ter rompido com a ordem das coisas, da razão, também têm sua individualidade devassada pela confusão de si com o mundo e pela fragmentação do seu eu, a alienação de si mesmo. E assim também não é possível, segundo a concepção filosófica antiga, escolher, ser livre. Mas não quero ficar aqui me delongando em explicações. Quero falar dos loucos que vi nesta vida e que percebi como mais integrados. Não importa de que forma.

São os loucos de rua. Um que batia bola numa esquina, em frente ao Sesc, em Ribeirão Preto. Aliás, pra mim é muito simbólico que ele ficasse exatamente no semáforo de frente ao Sesc. Pois esta instituição me traz sempre muito boas lembranças em relação a artes, esportes, convivência com as diferenças, humanização da vida. Era o louquinho do Sesc ou do posto Maravilha. Um posto de frente ao Sesc. Na verdade ele estava mais pra Maravilha do que pra Sesc.

E aquilo era uma maravilha. Ele passava ali seus finais de tarde, dando embaixadinhas com uma bola de futebol oficial e camisa de times. Adorava cortejar um ônibus inteiro parado no sinal. Controlando a bola, acenando pra galera, recebendo diariamente inúmeros aplausos. Aquilo era de uma alegria contagiante. Para outros poderia ser visto como algo triste, digno de dó. Mas eu e meus irmãos nunca vimos a coisa assim. A gente gostava. E ele gostava muito daquilo. Era seu espetáculo, seu show diário. Não estava mendigando, não parecia padecer de nenhuma miséria. Gente, convenhamos: bola oficial e camisa de times.

“Olha lá, Dri. O louco do futebol...”, dizia Cako ou Edu.

“O que será que se passa na cabeça de um sujeito desses?”, perguntávamos a nós mesmos, os três, juntos.

Um amigo meu fez tratamento em hospital-dia por um bom tempo. Sofria de alcoolismo e alguns agravantes. Sempre fora meio louquinho. Bebendo, a coisa ficava mais intensa. Não vou dizer quem é. Não pretendo expô-lo. E se eu pedisse a ele para publicar aqui sua identidade, ele deixaria. O cara é louco. Está pouco se lixando.

Um dia ele disse ao psiquiatra que tinha vontade de parar numa esquina movimentada e fazer discursos.

“Faça seus discursos. Por que não? Tá com medo do que os outros vão pensar?”, sugeriu o psiquiatra, que também não batia muito bem das idéias.

E não é que ele fazia mesmo. E não ficou marcado como o louco da esquina não. É necessária maior disciplina e assiduidade para tal. Como fez somente algumas vezes, não ficou para a história. Sabe aquela coisa de louco da hora, louco que se recupera? É visto como aquele sujeito excêntrico que deu ou ainda dá, de vez em quando, umas surtadas, sabe.

E esses loucos de rua podem também ter outro nome, mais carinhoso: “maluco beleza”, que virou até tema da música do Rauzito. Porque existe o maluco-beleza e o maluco-malvadeza. O primeiro é sangue bom, alto astral, alegria pura. O segundo é chato, doente, malévolo. Desses eu fujo. Mas também tem aqueles pseudomalvadeza, ou malvadeza sem risco. Melhor dizendo, tem louco que morde e louco que não morde. Louco de cidade do interior, que vive na rua, geralmente não morde. É igual vira-lata. Agora aquele que vive trancado, que se isola, que não convive, estes me parecem mais perigosos.

E por falar em pseudomalvadeza, e o seu Gino, hein? Ah, esse foi o louco mais famoso do meu bairro, na infância e adolescência. E tive o grande privilégio de morar na mesma rua, de frente à casa do sujeito.

“Meia, meia, meia! Eu sou o demônio!”, dizia bem alto, em tom enérgico e olhar diabólico, dentro do ônibus lotado, nos fundos.

As pessoas se assustavam e se afastavam, deixando seus lugares vazios. Gino sentava-se e dizia, dando gargalhadas diabólicas:

“Como é bom ser o diabo! Como é bom poder sentar onde eu quiser! Ah hahahahahaha...”, e ria-se, demoradamente, como num filme de terror. Eu e meu irmão ríamos juntos. Seu Gino era nosso chapa.

Mas a gente também brigava muito com ele. A molecada gostava de infernizá-lo. Eram brigas infinitas, verdadeiras guerras, com várias batalhas. Ele fatiava a bola que caia na sua casa, literalmente. Não somente rasgava ou furava, fazia churrasquinho mesmo. O cara botava fogo, cortava em pedaços. Louco, louco. E a molecada revidava. Punham bomba na sua caixa de correio e coisas semelhantes. Mas o que mais gostavam era de infernizá-lo com gozações, dançando e cantando em sua frente, correndo dele.

“Gineta campestre!!”, rebolando, em paródia à música do comercial do refresco Ki-suco campestre.

E seu Gino pegava pedaço de pau, atirando-o na molecada. Um dia agarrou meu irmão pelo shorts, que o bichinho quase se borrou todo, mas conseguiu fugir, com as calças meio arriadas. Ichi, meu irmão não era brincadeira. Capeta. Em plena festa junina pegou o microfone e começou a mexer com seu Gino. Minha mãe ficou uma arara.

Mas seu eu fosse aqui contar todas as peripécias do convívio com este nosso vizinho, precisaria de mais e mais parágrafos... Deixemos para as próximas estórias. Se o leitor quiser...

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* Lobosque, A. M. (1997). Princípios para uma clínica antimanicomial. São Paulo. Hucitec.


Monday, November 14, 2005

O NINJA 5 (Série Colegas de República)

Hans, apesar de holandês, tinha requebrado. Um requebrado muito esquisito, mas que tinha seu estilo. Tinha um jeito de dançar que era uma espécie de caricatura do estilo de Ney Matogrosso. Era uma coisa cômica e que deixava as mulheres confusamente excitadas. Riam e ao mesmo tempo se sentiam atraídas, seduzidas.

Enquanto dançava freneticamente, Ramon o apresentou à Júlia. Não passou despercebido. Júlia ria muito e não tirava os olhos do holandês, tentando imitar sua dança. Hans sabia que parecia ridículo, mas se divertia muito com isso. Tinha um ensinamento que há muito tempo carregava fielmente consigo: “O ridículo move o mundo”. Sabia que todos nós estamos condenados infalivelmente ao ridículo e que este, quando aceito e assumido, é o veículo de uma existência mais lúcida e alegre.

Ramon lhe daria uma carona. Júlia iria junto. No caminho até o carro, ela avistou uma mangueira.

“Nossa, olha só, tá carregada de mangas maduras...”

Hans correu bastante e, em grande velocidade, escalou a mangueira, colhendo uma manga grande e bonita. Júlia surpresa, sorriu como a receber um dos melhores presentes daquela semana.

“Obrigada”, com o olhar vidrado.

No caminho conversaram algumas banalidades e nada mais. Isto fora numa quarta à noite.

Sábado, sete e meia da manhã. Hans ainda dormia. A campainha tocou: era Júlia.

“Oi. Desculpe, você estava dormindo, não é? É que havíamos combinado de caminhar no parque, lembra?”

“Ah, sim, sim”, não se lembrava de porra nenhuma. Estava bêbado.

Tomaram café juntos. Deram muitas risadas.

“Ei, Hans. Você tem baseado? Vamos levar um pouquinho.”

Caminharam bastante. Depois subiram em uma mangueira bem frondosa e lá começaram a fumar um baseado. Hans agiu rápido e tentou, sem muitas demoras, dar-lhe um beijo.

“Nossa, que pressa. Nem conversamos direito e você já vem logo querendo me beijar. Não beijo estranhos.”

“Ah, baby. Você me acorda às sete e meia no sábado pra ficar me recusando um simples beijinho.”

“Vocês homens são todos iguais. Só pensam nisso.”

Preferiu relevar, contornar a situação. Não engrossaria com a menina. Afinal, caminhar de manhã cedo no parque e depois fumar um baseadinho com alguém interessante era algo agradável. Júlia era atriz, tinha boa conversa pra se jogar fora.

Passaram a manhã toda no parque. Hans enrolou vários baseados, pois Júlia queria sempre mais. Fazia de tudo para seduzi-la e nada. De repente:

“Vamos lá pra sua casa dar aquela trepada selvagem. Quero chupá-lo todinho...”

Então tentou beijá-la e ela esquivou-se.

“Pra quem quer dar uma trepada selvagem, um beijo não é nada.”

“Aqui não. Tem pessoas olhando. Gosto de privacidade, discrição.”

Foram pra casa. Ela pediu mais baseado. Fumou tudo o que ele tinha em casa também. Nunca vira alguém fumar tanto e ainda parar em pé. E ela conversava normalmente, nem parecia entorpecida, a não ser pelos olhos vermelhos, em escaldante magma, do olhar siderado e perdido no vulcão de si mesmo.

Por fim, no sofá da sala, beijaram-se. Hans levantou-se, de um só golpe, e correu para o quarto. Tirou toda a roupa e pulou na cama, completamente nu.

“Porra, velho. Pensei que fôssemos tirar um sarro aqui na sala”, lamentou Júlia.

Fumou mais um pouquinho, pensativa. E foi atrás de Hans. Chegando à porta do quarto:

“Você está pelado? Onde fui me meter? Que saco, vocês homens só pensam nisso!”

Bateu a porta foi-se embora, desiludida.

Três dias depois a campanhia de Hans tocou novamente. Agora às seis e quinze da manhã.

“Ah, Júlia, pelo amor de Deus, me deixe em paz.”

Foi para o quarto e deitou-se novamente.

Ela tinha uma cesta de mangas, bem cheirosas e no ponto. Deixou-as na cozinha e foi até a porta do quarto. Ficou observando-o dormir por alguns instantes. Tirou toda a roupa e deitou-se ao seu lado. Beijou-o até que acordasse.

“Júlia, afinal de contas, o que você quer de mim?”

Ela respondeu em uma única, rápida e insólita frase:

“Mete ni mim...”

Wednesday, November 09, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 5 (O Ninja 4)

Hans descendia de uma família rica, mas que havia empobrecido pouco antes de nascer. Morou então nos bairros mais pobres de Amsterdã. Sofreu com um pai alcoólatra e violento, até uns 25 anos de idade, quando este veio a falecer de cirrose. Na infância e adolescência, além de se envolver em muitas confusões e brigas, praticou alguns furtos e outros delitos. Frenqüentou academias de boxe e chegou a lutar profissionalmente algumas vezes. Mas só veio definitivamente a encontrar um rumo mais estável em sua vida ao entrar para o exército aos 19 anos.
A vida de militar favoreceu uma canalização mais sadia de toda aquela energia. Aprendeu com unhas e dentes o valor da auto-disciplina e da perseverança e, com muito esforço, entrou para a universidade, no curso de Filosofia; o qual cursou durante todo o período em que esteve no exército. Também foi aluno em algumas disciplinas de outros cursos ( Sociologia, Ciência Política e Psicologia), e assim foi formando uma visão bem crítica e entrando em choque com o posição militar que já ocupava: a de sargento.
Terminada a faculdade, não teve jeito, deixou a vida militar. Enquanto não conseguia emprego em sua área de formação universitária, foi ganhando a vida com o que aprendeu no exército: foi contratado para o o rigoroso serviço segurança da embaixada dos Estados Unidos na Holanda. Permaneceu ali durante três anos e foi demitido sob a alegação de algo parecido com subversão: foi flagrado lendo algum texto de índole marxista ou anarquista durante o plantão. Apesar de toda a sorte de decepções com os americanos, valeu a pena, pois saíra de lá falando fluentemente o inglês. Com o dinheiro de suas contas, foi correr a Europa. Ficou cerca de um ano viajando, e disse jamais ter se esquecido do que viu e conheceu no leste europeu. Durante alguns anos passou então a viver assim: trabalhava bastante durante um tempo, juntava um bom dinheiro, economizando tudo o que podia, dormindo pouco, morando e vestindo mal. Depois gastava-o todo em viagens, para os mais diversos locais possíveis. Foi assim que conheceu os cinco continentes.
Em sua viagem à América do Sul, conheceu uma brasileira e apaixonou-se. Como a santa deu conta do recado, não mais desgrudaram. Entre idas e vindas, em um relacionamento cheio de loucuras e absurdos, já estão juntos há dez anos.
Conheceram-se em uma parada de ônibus. Caminhando, a alguns metros da parada, já pôde perceber que ali havia duas garotas, as quais pareciam comentar sobre o sujeito grande e esquisito que se aproximava. Observaram-no e riram-se, discretamente para que o estranho não se desse conta do motivo. Hans não teve dúvidas, estavam acintosamente rindo dele.
“Por acaso, eu tenho cara de palhaço”, disse assim, do nada, com aquele sotaque carregado.
Riram-se mais ainda, mas agora tentando de todo modo conter-se, em um misto de situação hilária com pavor.
“Não, pelo amor de Deus, de jeito nenhum, moço”, ainda rindo, mas assustadas.
O sujeito era bem esquisito. Vestia umas roupas meio orientais e trapeadas, sapatilhas de samurai e trejeitos de filme de kung-fu. Cabeludo e careca ao mesmo tempo, alto e forte.
Mas este desencontro inicial foi a ponte para se conhecerem.
Saíram juntos algumas vezes. E um dia Laura revelou que gostaria de experimentar haxixe. Hans conhecia tudo quanto era droga. Laura primeiro disse que seu sonho era fumar ópio. Mas como isso não existe no Brasil, disse que um haxixinho já estava de bom tamanho. Era a maior maconheira, mas ainda não tinha provado esta variante da cannabis.
Foram para casa Hans, pois Laura morava com a família. Enrolou um baseadinho bem firme, adicionando um pouquinho de haxixe. Tinha pouco e não iria desperdiçar com a primeira menina que aparecesse. Para quem nunca provou do haxixe já estava bom demais. E depois não suportaria ter de ficar segurando onda de mulher em pânico. Ainda mais naquele caso. Laura era muito dissimulada e gostava de ser fazer passar pelo que não era. Tentava demonstrar o tempo todo que era muito louca. Vivia para seduzir e dar o fora. Tinha prazer em ver os homens babando. Deixava o caminho totalmente aberto, e ao menor sinal de investida, se fazia de desentendida e humilhava o infeliz com “Você está me confundindo; não te dei esse tipo de liberdade; nunca senti nada por você; te vejo somente como um amigo”.
Mas a filha da puta gostava de provocar, de insinuar-se, de falar muita sacanagem, fazendo perguntas íntimas, demonstrando interesse, para depois cuspir na cara que você era um tarado idiota. Era provocação pura e deleitava-se em humilhar.
Hans percebeu seu jogo infantil e simplesmente transformava-se numa montanha de ironias, sustentando os mais diversos personagens e iludindo quem se achava muito esperta. Este jogo foi crescendo, juntamente com a excitação absurda que o acompanhava. Ela o tinha como um louco varrido, senão um psicopata, um perigo ambulante e sedutor. Ele a via como uma burguesinha mimada, metida a louca e intelectual: pura fachada a esconder-se por detrás de clichês das tribos de que fazia parte. Uma gostosa e atraente cretina. Além de gratuitamente competitiva.
Tudo isso mais esse último detalhe, a constante competição idiota que ela vivia a fomentar, deixavam-no profundamente irritado e desconfiado. Ela não era digna de confiança. Ali jamais abriria seu coração.
Enrolou um baseado bem firme, deu uma tragada profunda e suave.
“Sabe como se ensinam as pupilas?”
“Como?”, perguntou ela, como se tivesse entendido alguma coisa.
Hans levanta e apaga a luz. No escuro, toda pupila se inflama, se excita. E mestre Hans poderia agora começar sua aula de hoje.
A pupila começa a tossir. Hans sai do quarto e vai até a cozinha buscar um copo d’água. No escuro, tira toda a roupa e retorna completamente nu, com o copo d’água na mão.
A pupila bebe a água, percebe a nudez e dispara a dar gargalhadas.
“O que foi? Algum problema?”
“Não, nenhum”, rindo convulsivamente.
O mestre começa a rir também, em risadas diabólicas e que terminavam de repente em uma expressão de extrema gravidade.
“Por que você está rindo?”
“Ah, não sei. Você vai buscar um copo d’água e volta pelado e quer que eu faça o quê? Tenha paciência.”
“Pelado? Você está me vendo pelado? Esse haxixe é do bom.”
Laura sorria amarelo em sua boca e dentes tortos. Batom excessivo e rugas tristes. Seu rosto se desmanchava, sua máscara de cera se derretia e não sabia onde enfiar a aquela boca torta. Contemplava em silêncio e pânico um mundo insano do qual nunca fizera parte.
“Vem cá...”
Puxou Hans para perto de si, como se fosse abraçar um louco infeliz que precisava do colo de alguém que tinha juízo. Coitadinho, não sabe o que faz.
“Não. Tire sua roupa também”, se desvencilhando dela.
Ela insistiu e ele foi claro. As regras seriam outras. Morte aos seus clichês.
“Você se despiu, na sua vida, somente frente a duas ocasiões: banho e sexo. Hoje será diferente. Irá despir-se, totalmente, somente para conversar.”
Foi difícil, muito difícil. Mas Laura, por fim, ficou completamente nua.
Ficaram, frente a frente, somente conversando, sem tocar-se.
Hans começa a masturbar-se e a conversa continua, como se nada estivesse ocorrendo. Ela fingia que não estava vendo. Mestre em fingir e fugir.
“Não está percebendo nada de diferente?”
“Não...”, tinha gozo enorme em dissimular.
E, de repente, num átimo, caiu de boca. Sem dizer uma palavra se jogou sobre o pênis de Hans, chupando-o magistralmente. Tinha os lábios muito protuberantes, naturalmente indecentes, o que dava uma impressão de talento nato para a felação. Tinha também um corpo moreno, de pele macia e muito lisa. Marquinhas de biquíni. Tempo pra se cuidar não faltava. Era uma moça muito atraente e cortejada.
Hans estava agressivo, sádico. Ela despertava seu sadismo. Penetrava com força. E ela gemia de modo muito insólito, como bicho. Uivava, emitia grunhidos. Gemidos doentios, deformados, mas extremamente excitantes.
Penetrava forte e rápido, e parava de repente, no ar, e dizia, em tom bem agressivo:
“Sabe qual é o seu problema?”
Então penetrava mais rápido e mais forte. E parava novamente. Intercalando fortes estocadas com palavras fortes. Era para machucá-la.
“Seu problema...”, batendo bem forte, “é que você é... muito... competitiva...!”
E gozou, como quem matava alguém, como quem se vingava. Como se gozasse na cara do inimigo.
“É isso, minha hora já deu. O parque já fechou. Por hoje já era. Volte amanhã.”, ordenou, vestindo-se.
Levantou-se rápido, como quem tivesse acabado de cumprir um serviço. E Laura, completamente atônita, sentia-se violentada, perplexa com toda aquela agressividade.
Puta da vida, limpou-se com o edredom, cuspiu no chão, e retirou-se apressadamente com as roupas na mão. Foi para a casa e chorou durante a noite toda. Fora vilipendiada, agredida, sem o menor motivo. Estava arrasada e com muito ódio no coração. Como as pessoas podiam ser tão más?
Às quatro da manhã resolveu ligar:
“Você foi um monstro comigo. Estou arrasada. Você não tem noção do que fez.”
“Que bom. Agora posso dizer porque agi assim. Não confio em você. Conheço seu tipo, o prazer que sente em humilhar, em ter um mundo de homens atrás de você para somente desprezá-los e assim sentir-se mais amada, com mais valor nesse mercado sujo da vaidade em que se afogou o seu coração.”
“Nada justifica você ter agido como um monstro, como um maníaco. Seu monstro sujo. Eu odeio você!”
Trocaram mais e mais ofensas. Porém, agora a batalha era franca. E puderam falar tudo o que sentiam um para com o outro. Terminaram a conversa encontrando um acerto. De modo suficiente, resolveram-se. Ele, contudo, continuava vendo-a como uma completa idiota.
Dias depois, cruzaram-se na rua, rapidamente. Ela estava maravilhosa. Seu sorriso era lindo, sereno e sincero. Hans engolia seco. Seu coração quase saiu pela boca.

Friday, November 04, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 4 (O Ninja 3)

Hans tinha mantra pra tudo quanto é ocasião. Tudo devia ser precedido por palavras sagradas. Um mantrazinho antes do café da manhã, outro para os estudos, antes de almoçar, de dormir, ao caminhar, para o nascer do sol, lua cheia, para ressaca, mau-olhado e muitos outros.

Passo pelo corredor e percebo que Hans está no banheiro e emite grunhidos. Está soltando o verbo. Fala de modo forte e rápido, como um japonês raivoso, prestes a quebrar o primeiro que aparecer.

Ao sair, deixa o rastro de defecador. E não resisto, novamente:

“Hans, o que você estava falando ou, sei lá, resmungando, dentro do banheiro?”

“Este é um mantra japonês que utilizo para a defecação. Muito bom, ajuda a purificar os intestinos. Depois que passei a recitar este mantra, nunca mais tive problemas intestinais.”

Thursday, November 03, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 3 (O Ninja 2)

O mais curioso eram as contradições. Ao mesmo tempo que Hans conhecia o que havia de melhor, também sabia ou cultivava lixo. Gostava de filmes de arte, assim como de cinema trash. E costumava assistir várias e várias vezes a um mesmo filme. Chegava do trabalho, pegava uma panela somente com arroz e ficava na frente da televisão, comendo uma panela inteira de arroz, puro, sem qualquer mistura; assistindo e reassistindo ao mesmo filme. Dava risadas para a mesma cena, várias vezes, como uma criança que se regozija da mesma piada durante semanas e ri sempre como se a tivesse ouvido pela primeira vez. O senhor de 45 anos se transformava em uma criança, enorme, cheia de músculos, careca e com cabelos compridos que se estendiam do pouco que lhe restava na cabeça. Ria bastante, sozinho, e feliz. Depois recolhia-se para seu quarto, acendia um incenso, meditava um pouco ou fazia yoga e então dormia.
Durante várias vezes, já tarde da noite, cerca de uma ou duas horas da manhã, eu ouvia um barulho muito diferente, de uma vara a ecoar no ar, ou de ferro raspando em ferro, como em um funcionamento rápido de engrenagens. Vinha do quarto de Hans, de onde brotava o cheiro usual de incenso e uma luminosidade vermelha. Aquele ruído, juntamente com a luz vermelha, era uma combinação a qual não pude decifrar. O que estaria fazendo ali? Um dia não resisti à curiosidade e resolvi bater à sua porta.
“Pode entrar”, respondeu, em alto e bom tom.
Ao abrir a porta este era o cenário: uma luz vermelha, ligada a um fio comprido, o qual se conectava à tomada. O quarto, totalmente vermelho, totalmente fechado e cheio de vapor no ar, quente como uma sauna. Cheiro forte de suor, misturado com incenso. O altar de orações de Hans bem à sua frente, com todos seus santos, orixás e imagens de diversas religiões. E Hans, em pé, somente de cuecas, bufando com força, espirrando suor e saliva para todos os lados, completamente absorto, em transe. Manipulando seu chiaco* como um ninja insano.

* Para quem não sabe, o chiaco (leia-se “tiaco”), é aquela famosa, cinematográfica, e adolescente arma oriental, muito utilizada e popularizada por Bruce Lee, constituída de dois bastões, ligados por uma corrente.

Saturday, October 29, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 2 (O Ninja)

Hans era um holandês muito gente boa e exótico. Tinha teorias pouco comuns e interessantes sobre o ser humano, a vida. Vivia de modo saudável e sempre o mais próximo possível da natureza. Meditava e fazia yoga já bem tarde da noite. Às vezes já era uma ou duas horas da manhã e lá estava Hans, concentrado, se contorcendo todo nas mais diversas e bizarras posições de yoga, com influências de várias outras práticas orientais, em um ecletismo cheio de estórias de mestres, livros, filmes e referências das mais variadas espécies.
Também havia praticado diversas artes marciais. Além do fato de saber como sobreviver na selva, no mar, com pouco alimento e recursos, pois fora do exército de elite da Holanda. Sabia manejar tudo quanto é tipo de arma e conhecia as mais diversas formas de defender-se ou matar. Hans era alto, forte, uns 45 anos de idade, mas com um corpo uns quinze anos mais jovem. Por outro lado, bebia e fumava feito um louco, inclusive maconha. Já havia experimentado tudo quanto é tipo de drogas: maconha, haxixe, cocaína (inclusive a folha), ecstasy, chá de cogumelos, absinto, ayahuasca, peiote, LSD, ópio, heroína e várias outras porcarias. Também conhecia todos os cinco continentes: comera churrasquinho de grilos na Tailândia, baiacu na Coréia e macaloba em uma tribo indígena daqui do Brasil.
O baiacu, para quem não sabe, é aquele peixe venenoso, extremamente difícil de se preparar e que serve de sofisticada refeição para os orientais que pretendem almoçar bem perto da morte. Pois, diante de qualquer pequeno erro em seu preparo, este peixe pode matar a quem se atreve a comê-lo. São cerca de setecentas mortes ao ano, de pessoas envenenadas por baiacu, somente na Coréia do Sul. E a macaloba é uma bebida alcoólica indígena, fruto da fermentação de milho com cuspe, pois no seu preparo, este deve ser intensamente mastigado e misturado à saliva.
Hans era uma pessoa vivida, experiente e sangue bom. Era o nosso mestre shaolin. Costumávamos chamá-lo de “O Ninja”. O apelido surgiu de uma história que ele mesmo nos contou. Como Hans conhecia diversas artes marciais, houve quem exagerasse por demais as expectativas acerca de suas habilidades. Jorge, um sujeito de uns trinta anos de idade, o conhecera e ficara tão surpreendido com as estórias de Hans, que propunha seriamente levá-lo a participar de um campeonato de vale-tudo. Queria e acreditava que Hans pudesse enfrentar e vencer quaisquer brutamontes nascidos para matar e cerca de vinte anos mais jovens.
“Hans, você não me engana, conhece a fundo o ninjutsu. Você possui muitos conhecimentos sobre sociedades secretas, ocultismo e não revela facilmente o que sabe. É, aquela história: o sábio não diz o que sabe e o tolo não sabe o que diz. Por favor, ensina-me da arte, mestre...”
E Hans deu-lhe uma forte bofetada no rosto, estridente, de mão aberta, rápida e inusitada.
“Então, cale-se, seu tolo!”
Jorge, em princípio, ficou um pouco assustado, pois fora um ataque fulminante, repentino. E doera bastante. Colocou a mão sobre a face avermelhada, marcada fortemente pela bofetada. Fez primeiramente uma expressão de dor e desapontamento, da qual brotou surpreendente e espontaneamente um sorriso. Um sorriso de satisfação, de quem cresce com um tapa na cara: fora seu primeiro ensinamento ninja.

Thursday, October 20, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 1


Havia sido enfim convocado para assumir uma vaga na tão famigerada e disputada moradia da universidade. Recebi as chaves das mãos de um sujeito baixo, moreno escuro, olhos esbugalhados e grandes, sotaque e trejeitos de gente do interior. Cheio de pulseiras douradas nos braços, gola da camisa aberta, mostrando os pelos do peito. Barrigudinho, com uma voz aguda, de gente pequena. Falava sempre chamando pra perto, às vezes sussurrando, como se guardasse segredos de estado, ou aquelas falas de malandro, cheio das pulseiras, dos relógios grandes e dourados. Estava saindo do apartamento para o qual eu iria:
“Seguinte, estou saindo, vou para um outro apartamento, onde tenho amigos. Você vai dividir quarto com um sujeito meio complicado.”
“Como assim, complicado?”
“Sabe o que é, o rapaz é bissexual.”
“E daí? Isso, por si só, não é problema.”
“Não sei, não suportei. Acho meio complicado esse tipo de coisa.”
“Ele fez alguma coisa de errado? Deu em cima de você, desrespeitou, ou coisa semelhante?”
“Não, não...”
“Então não vejo problema. Preconceito seu.”
Pensei: coisa de caipira, de gente grossa. Vindo de um sujeito cheio de pulseiras douradas e que fazia questão de exibir os cabelos do peito era a atitude mais esperada.
No dia em que cheguei para a mudança, o sujeito veio me receber. Alto, meio gordo e olhos claros. Recebeu-me com formalidade e excesso de perguntas. Fez uma espécie de entrevista. Queria saber de todos os meus gostos e manias. Dizia que era importante esta conversa para que tivéssemos um bom convívio. Achei excessivo, meio neurótico. Contudo, como sou muito tolerante, deixei que perguntasse e falasse o que quisesse. Tinha um olhar siderado. Gostava de olhar de forma profunda e um pouco mais demorada que o usual, como se pretendesse impor respeito. A verdade é que tinha um olhar meio doente. E logo percebi que era uma figura dominadora.
Infelizmente, Reginaldo (este era seu nome) foi adquirindo liberdade. Era cheio de estórias que aumentavam seus talentos, tinha um prazer enorme em gabar-se, em mentir (o que fui perceber depois). Porque “ganhava muito dinheiro, tinha patrimônio e havia morado na Europa.” E foi logo se entregando:
“Vou abrir logo o jogo, baby. Porque detesto o clima de suspeitas, a tensão no ar. Sou gay.”
“Tudo bem e daí?”
“Não, somente para deixarmos as coisas em pratos limpos. Não gosto de fofoca, de diz-que-diz. Jogo limpo e já vi que você é uma pessoa legal, pra frente, tranqüila, liberal. Espero que sejamos bons amigos. É isso.”
Dias depois resolveu fazer uma feijoada. Disse que havia convidado os outros três moradores. Que seria bom para confraternizarmos.
No dia da tal feijoada, chego da universidade e percebo que o apartamento, além de vazio, estava imundo. O sujeito havia emporcalhado toda a casa para cozinhar. Tudo muito sujo e cheirando a feijoada. O apartamento estava fechado, abafado. Aquele ar gorduroso para todo e qualquer canto. Roupas no varal cheirando gordura. Aquilo foi suficiente para abalar meu humor. Não gostei nada, nada. Fiquei irritado.
“Onde estão todos?”, perguntei.
“Devem estar chegando. Enquanto isso vamos ouvir uma música.”
O cara amava Roberto Carlos. Botou “Fera ferida”. E começou um longo discurso sobre sua vida e a relação com esta música. Ele era uma fera ferida, “animal arisco”. Um bicho, uma fera mordida. Uma bicha louca, solta no mundo, ameaçando a ordem, a razão, o bom senso, os bons costumes.
Passou-me o prato de modo a pegar em minha mão em um gesto de envolvimento. Esquivei-me. Ele estava mais afetado do que nunca. Peguei rapidamente o prato e procurei sentar-me à distância. Continuava loucamente a contar tudo quanto é estória de sua vida. E a música não parava de tocar. Apertou o botão de “repeat”. Tocaria indefinidamente. E a feijoada gordurosa, salgada.
“Está gostoso?”, perguntava, com olhar insano, fixo e extremamente ameaçador.
“Ah, sim, sim.”
Terminou sua refeição e começou a dançar, sozinho, como se tivesse um par. Portava uma tanguinha ridiculamente pequena diante daquele monte de banhas. E ficou ali, rebolando, rodando por toda a sala. Pensei: “Deus do céu, eu não mereço uma coisa dessas”.
Como se não bastasse, convidou-me para dançar, puxando-me pelo braço.
“Vem, vem. Deixa de ser machista, rapaz! Seja mais alegre, mais libertário.”
Para a loucura geral daquele dia, deixou que a mesma música tocasse repetidamente por quase uma hora. Dançava, rodava, rebolava. Ora como se fosse balé, forró, valsa ou como uma stripper de prostíbulo de beira de estrada. Estava surtado. Encarnou a bicha mais louca do mundo e resolveu traduzir isso em dança. E uma bicha louca é isso: o feminino inflamado, em estado de bicho, regorgitando loucuras.
Comi o mais rapidamente que podia. Sem que ele percebesse joguei fora a maior parte da feijoada que estava em meu prato. Aquilo era uma bomba para uma congestão: gordura e sal em excesso; “Fera ferida” comendo solto (e alto pra caralho); calor e falta de luz. “Deus do céu, dai-me uma luz.”
Eu já estava no quarto, correndo, preparando minhas coisas para fugir imediatamente dali, quando ouvi um rugido de alguém que passava mal, vomitava. Corri a até a sala e lá estava Reginaldo, debruçado, botando os bofes pra fora. Vomitou toda a feijoada e, desesperado, dizia sentir falta de ar e fortes dores no peito.
“Adriano, pelo amor de Deus, me salva! Preciso de um médico, urgente! Sou muito jovem pra morrer”. Chorava como uma criança, implorando socorro.
Neste exato momento chegava um outro morador. Tentamos os dois carregar o enfermo. Mas era muito pesado. Chamamos outros colegas, de outros apartamentos. Por fim conseguimos colocar aquele mamute no carro e sair voando para o pronto-socorro mais próximo. Lá foi atendido prontamente, por um médico muito gentil e bem humorado, o qual soube acalmar a fera.
“Foi mais o susto do que tudo, Reginaldo.”
“Doutor, o senhor salvou minha vida, é uma pessoa iluminada. Serei eternamente grato por isso. Deus abençoe o senhor e toda a sua família.”
No caminho de volta pra casa, Reginaldo era o porta voz da gratidão universal e infinita.
“Vocês provaram o que é ser amigo. Eu amo vocês, sabia. São minha família.”
Durante todo o percurso contou mais estórias de sua vida e também foi capaz de contar piadas, de dar risadas. Chegando em casa, abraçava a todos que o socorreram. Um abraço longo, meio constrangedor, de corpo inteiro. As pessoas ficavam meio sem jeito. Mas aquilo era o Reginaldo
<>Queria se mostrar como uma pessoa grata, resolvida e carinhosa.

Entrou no apartamento e qual foi a primeira coisa que fez, como disse, “em homenagem” aos amigos? Colocou uma outra música para tocar, no repeat, indefinidamente. Bem alto, para que todos os outros moradores do prédio também ouvissem, principalmente os desafetos: “Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito...”.

Saturday, September 17, 2005

ESTÓRIAS DE VÔ TENOR 5

Meu avô era muito severo e conservador. Chegava na minha casa e desautorizava minha mãe, não permitindo que nós, os meninos, lavássemos a louça, pois isto era serviço de mulher. Sempre fora conhecido como um sujeito forte, de compleição robusta. Há um ano encontrei um senhor de seus sessenta anos de idade, amigo de infância de meu pai, o qual disse: “Seu avô era um sujeito muito forte. Carregava mais de cem quilos na cabeça”, fazendo gesto de força com os braços e inflando o peito.

E o patriarca, além de forte e grande, era muito severo e bravo. Tinha uma voz muito grave e firme. Era conhecido como o Véio Trovão. Então daí já dá para imaginar o respeito e temor que tínhamos por ele. Aquele filho de italiano era o poderoso chefão.

Quando criança, eu fugia de sua mão pesada e de seus sermões: “Bota mão de homem nisso aí, rapaz!”, fazendo um gesto que ameaçava um safanão na orelha. Bichinho ouvia isso e saia cabisbaixo, com o rabo entre as pernas, para que o velho completasse decentemente o serviço. Era difícil se sentir macho perto do “alfa dominante” (como são chamados os machos dominantes e detentores das fêmeas entre os primatas superiores). Conseguíamos no mínimo não ser nada, passar despercebido, ou ficar mesmo parecendo maricas.

Entretanto, nós, o netos, fomos ficando mais velhos, maiores, mais fortes também, e mais malandros. O capeta do meu irmão mais novo não perdia a oportunidade de rir do avô. Aliás, já fazia isso desde pequeno, e com todo mundo. “Bota mão de macho nisso aí!”, dizia ao velho, pegando-o de surpresa. E o Véio Trovão fitava-o com expressão austera, hesitando entre o riso e o safanão. Todos em volta, por sua vez, não conseguiam deixar de rir da situação. Um olhando feio e ameaçador e o outro com olhar meio risonho de quem se prepara pra levar porrada ou fugir.

Então fui fazer amizade com o Véio Trovão já na maioridade. Perguntava a ele tudo o que podia sobre a história da cidade e do mundo, de como eram as ruas, bairros, o que ainda não existia, os tempos da revolução de 32, da segunda guerra. Enfim, história não faltava e o Véio era bom contador: a voz grave, firme, pausada.

Criava muitos passarinhos. Tinha mais de quarenta gaiolas e alguns viveiros em seu quintal.

“Vô, é verdade que a semente da maconha serve de ração pra passarinho?”

“Serve. Eu dava pros meus canário e eles ficavam afinadinho.”

“Mas essa era uma semente que se plantada, vingava?”

“Vingava. Eu dava muito pros meus passarinho. Tanto que foi caindo no quintal e quando me dei conta, nasceram uns pé. Já tavam bem grande quando um vizinho passou, viu, e disse que isso dava cadeia.

Cortei tudo e botei no varal pra secar.

Quando já tava tudo bem seco, de noite, quando todo mundo já tava dormindo, botei no fogão à lenha”, apontando para o fogão que ainda existia, no fundo do quintal. “A fumaça foi subindo, e eu puxava”, fazendo o gesto de quem aspira profundamente uma fumaça que se eleva aos borbotões.

Fiquei hesitante com o que seria o final dessa história: se faria um sermão conservador, se eu podia continuar perguntando, se me trataria mal. Mas, resolvi arriscar:

“E aí, vô, o que é que deu?”

Sutilmente fechei a guarda, encolhi-me um pouco, como em um impulso de auto-proteção, porque viria uma porrada.

Olhou-me profunda e austeramente. Pensei: estou frito...

Veio então a resposta fatal, com voz grave e enérgica:

“Eu fiquei louco!”


Wednesday, September 07, 2005

UM SENTIDO PRA VIDA

(Antologia do Prêmio Sesc-DF de Contos, 2005)


Fico muito introspectivo quando caminho. Certo dia, daqueles que brilham de forma diferente e em que já estamos introspectivos, estava a caminhar e alguns pensamentos muito intensos surgiram em meu ser. Resistiam a qualquer questionamento: percebi o quanto é inútil viver somente para si mesmo; o quanto a vaidade e uma ambição demasiadamente narcisista geralmente toma conta da vida de todos, senão de quase todo mundo. Percebi o quanto minha existência era e estava sendo absurdamente medíocre na tentativa de alcançar algum sucesso nessa vida, como a maioria das pessoas. Sonhava em ter sucesso no que faço e consumia boa parte de minha vida em devaneios acerca de mim mesmo e do que eu poderia ser. Resumindo, a conclusão fatal era de que tudo nessa vida funciona para o nosso próprio egoísmo e vaidade. E nesse dia outra idéia fixa, decorrente desta, pungente, tomou conta de minha alma e fez que eu enlouquecesse, por algum tempo.
A idéia era a seguinte: esta vida só vale a pena se vivermos para o outro, e é isto que é o amor em sua essência. Ajudar os outros, sem pedir nada em troca. Isto justificaria uma existência de paz, de iluminação. Não me peçam mais razões, quero simplesmente salientar que uma idéia tomou conta de mim e aqui narrar os enormes efeitos que produziu.
Fiquei tão possuído por tais pensamentos, que resolvi começar a agir naquele mesmo instante. Mãos à obra! Pensei: “quero ajudar, não importa onde, nem quem, nem como”. Continuei andando e não voltei pra casa, era muito trabalho a ser realizado por esse mundão a fora. Uma senhora carregava compras, parecia pesado. Ofereci-me para ajudá-la a levá-las em casa. Olhou-me bem desconfiada e surpresa. Mas diante de minha insistência e de minha aparência ingênua e naturalmente solícita, deixou que a acompanhasse até sua casa.
Depois dessa senhora, naquele mesmo dia, ajudei a empurrar um fusquinha velho, devo ter consolado umas duas ou três pessoas, gastei todo o meu dinheiro com jujubas, panos de prato, panos de chão, doces e quaisquer outras coisas que ambulantes vendessem nas ruas; cumprimentei muita gente e continuei andando. Quando dei por mim, estava a muitos quilômetros de casa e sem um tostão, morto de fome e sede, mas muito feliz. Feliz de um modo tão sereno e puro como nunca havia sentido.
O que fiz então? Comecei a esmolar, a pedir aqui e ali um trocado para inteirar na passagem do ônibus e para um marmitex. As pessoas, em princípio, mostravam-se bem assustadas, pois afinal eu não tinha a menor aparência de mendigo, pelo contrário. O dinheiro que consegui, comprei um lanche e nem pensei em voltar pra casa. Fiquei na rua até bem tarde e acabei dormindo no banco de uma praça. Acordei no dia seguinte com o canto dos pássaros, com a natureza brilhando sua vida pra mim como nunca. Eu era um homem realizado, feliz. Pensei, não volto nunca mais pra casa. Serei um andarilho, um mendigo, mas darei à minha vida o seu verdadeiro sentido e finalidade. Para que serve esta vida? Por que estamos aqui? Para isso, para amar o próximo, sem qualquer interesse, para ajudar os outros.
Continuei minhas andanças. Minha barba e cabelo cresceram. Arranjei uma escovinha de dente, uma mochilinha toda surrada e suja, um potinho pra comida, e sempre improvisava um cantinho para tomar um banho de vez em quando. Mas estar na rua o tempo todo é assim, não tem jeito, a gente fede mesmo. Mas eu nem percebia mais, estava feliz com a vidinha que levava, e orgulhoso de saber que aquele era meu destino, que tudo o que havia feito até ali não havia sido em vão, mas somente uma soma que levasse o caldo a entornar e fazer com que tivesse a visão divina do verdadeiro sentido da vida. Para muitos eu era somente um derrotado, um mendigo. Mas, para mim mesmo, eu era o máximo sendo o mínimo possível. Tive o mérito de poder me esquecer. Tirei férias de meu próprio ego.
Não sei o que aconteceu, mas o desapego de mim mesmo fez com que enfrentasse os maiores perigos, agressões e enfermidades com tanta serenidade que nem podia me reconhecer naquele corpo, naquele ser. Eu simplesmente era. Era sujo, fedido e repugnante, mas exalava luz, e as pessoas percebiam, pois onde quer que eu chegasse ofuscava o evento que ocorria: tudo parava e todos subitamente olhavam pra mim. Aliás, eu chamava muito a atenção, inclusive pelos sete vira-latas que sempre me acompanhavam.
Depois de um ano nesta vida divina e iluminada, estava andando, sempre sem saber para onde ir e, de repente, quando vejo, estava na rua de minha casa, em direção à ela. Para minha surpresa, minha mãe estava na porta do prédio, sentada num banco, fazendo tricô, de costas para a portaria, e não me viu. Andei instintivamente (como sempre) em sua direção. Passei por detrás dela e entrei no prédio. Devagarinho fui subindo as escadas e cheguei ao meu andar. Abri a porta. Fui até a cozinha. Nossa, que beleza, a geladeira estava cheia. Peguei tudo o que podia e fui para a sala. Em meia hora comi o que poderia ter comido o dia todo, como um rei, bem tranqüilo e recostado no sofá, assistindo televisão: “a serenidade é a minha morada”. Tendo já comido bastante, feito um leão, peguei uma toalha no varal e fui para o chuveiro.
Tomei um banho daqueles, como há muito tempo não o fazia. Cheguei à porta de meu quarto e tudo estava como antes: caminha arrumadinha, tudo cheiroso, limpinho, meu aparelho de som num canto. Exceto por um detalhe muito desagradável: Bife, meu cachorro, estava dormindo em minha cama. Nunca suportei e nem permiti isso. Culpa da minha mãe que não soube educá-lo. “Saia daqui, seu porco filho-da-mãe!”. Dei-lhe uma bofetada no traseiro e o bichinho percebeu rápido que o dono do pedaço estava de volta.
Botei uma roupa fresquinha, liguei o som e deitei na cama. Adormeci esplendidamente. Acordei cedinho e tudo em silêncio, tudo macio, cheiroso e fofo. “Ah, como é bom estar em casa novamente. Como é bom ter uma casa e uma família. Como é bom ter para onde voltar...”


Tuesday, September 06, 2005

CACHORROS E PESSOAS

Saindo do supermercado, não pude deixar de reparar. Um cachorrinho, talvez um vira-lata, mistura de duas raças nanicas, pintcher com bassé, provavelmente. Feição lambida, angustiado, orelhas baixas, olhar fixo para dentro do recinto, preso na entrada. O dono fora fazer compras e deixara o pobre e engraçado cachorrinho lambido que o esperava para ser resgatado do fundo do inferno de ficar sozinho nas fronteiras entre dois mundos: o seu, encolhido num canto, e o dos homens, a transbordar em gente que entrava e saia do prédio.

Cachorro tem uma qualidade: sabe pedir. E quem não sabe, passa fome ou fica sozinho. O olhar de um cachorro carente é o melhor modelo de sedução tácita. Estamos logo rendidos a fazer-lhe um carinho. E poucos seres humanos tem a mesma sorte dos cachorros: a de serem espontaneamente afagados. E tanto uma espécie quanto a outra precisa de carinho. Eles sabem pedir e receber. Nós, entre nós, não sabemos pedir e nem dar.

Olhei em volta, e observei a multidão. Veio-me a seguinte imagem à cabeça: eu afagando todas as pessoas que via. Tinha um velhinho. Em termos de idade, crianças e velhinhos são bem mais parecidos com cachorros. E eu estava lá, fazendo um carinho no tiozinho, como se fosse um cachorrinho indefeso. Mas, transformar velhinhos em cachorros é muito fácil. Passei a procurar desafios maiores para minha imaginação. Sim, aquele homem de terno. Parecia imponente, muito seguro de si, talvez alguém muito poderoso, deputado, quem sabe. Agora era um cachorrinho sem palavras nem gesto de autoridade, comendo em minha mão.

E fui assim, desafiando minha imaginação, e tomando como vítimas de meus afagos pessoas cada vez mais improváveis e inacessíveis. Senhoras de muita coisa nessa vida, menos do que eu podia imaginar delas. Para ficar mais insólito era necessário ir fundo. Que o carinho fosse o mais próximo possível do que fazemos com os cães. Mãos firmes sobre a cabeça, alisando do pescoço até as costas. E as pessoas foram ficando cada vez mais parecidas com cachorros.

Um bom modo de quebrar distâncias entre eu e algumas temidas pessoas, autoridades incrustadas no meu imaginário como algozes de minha alegria e desprendimento. Não, não impeçam que eu respira livremente. Vocês são cachorrinhos carentes, precisando de carinho. Todos somos, em algum canto de nossa existência; ou no auditório escancarado da nossa perdição constante, na vida pública ordinária.

Como se uma figura de autoridade, uma pessoa muito poderosa, senhora de todos e de si, dissesse: “Não serei objeto de nada nem de ninguém. Também desejo ser amado, mas que o amor venha de baixo pra cima e não o contrário. Vocês devem me amar como a um deus, não como a um cachorro”. E assim o amor nunca se rende verdadeiramente ao que é de carne, osso, cócegas e risos: não alcança a alegria dos corpos sorridentes que pulam e brincam entre si. Se esquece de ser feito de mordidas de mentirinha, de coisas que não tem nome, e de que o amor pode brotar sem razão, na esquina da alegria, sem precisar de uma bíblia pesada para prometê-lo em sacrifícios por toda a história da humanidade. O amor que sentimos somente ali, naquele ínfimo momento de carinho e compaixão, por um cachorrinho lambido que ansiosamente espera seu dono na porta de um supermercado.

Saturday, July 16, 2005

Os loucos 3 (A louca do pão)

Os churrascos e chopadas da época de faculdade eram muitas vezes inesquecíveis. Fabulosa é a capacidade que o ser humano tem para superar seus limites. E estes existiam até o momento das festas. Adorava assistir e participar do espetáculo que de fato deve corresponder ao sentido de uma festa: alterações de consciência, alegria e impulsos fluindo mais livremente. E nossa amiga Ilza não escapou desses três quesitos fundamentais.

Quando me aproximei, percebi que Ilza e minha namorada riam convulsivamente, de olhos esbugalhados e já roxas com a falta de ar e dores no abdômen. Era uma risada louca, das duas, de quem já perdeu boa parte do controle sobre si mesmo. Apesar de aparentarem intensa alegria e gozo, tinham uma expressão mórbida de loucas.

Mas Ilza queria ir além, como quem vai adentrar o mar e confiando que o domina. Esse oceano que é nosso psiquismo e um barquinho de substâncias psicoativas a navegar em suas tempestades. Com aventura e espírito desbravador (às vezes suicida), assim concebe a maioria das pessoas que usam drogas para viajar por entre as bordas da realidade.

Falava muito alto e proferiu vários discursos. Alguns muito engraçados e talvez memoráveis. Era muito mico, muita coragem e espírito embebido em álcool e maconha para uma pessoa só. Sua personalidade parecia ali estar pelo avesso. E ela sabia o quanto isso era espetacular e perigoso. Mas quem conhece perigo no infinito extremo da alegria, a qual já fez a curva para adiante do que não mais podemos conceber?

Ilza foi subindo, subindo e de tão alto, como um balão, explodiu suavemente e pulverizou-se no ar. Continuo bebendo e fumando, cada vez mais. Estava voraz em saber o que poderia haver adiante, como lugares ainda não visitados por seu espírito, em sua busca desbravadora incessante. E por fim adentrou um ponto tão demente de sua ebriedade onde as palavras não tinham mais função, pois sua boca (babando) e sua mente já não eram capazes de articular mais nada.

Durante todo o tempo de sua loucura segurou firmemente nas mãos um pedaço de pão com lingüiça. Caiu no chão várias vezes. O pão raspava no chão, mas ela não o soltava, mesmo com as sugestões insistentes dos amigos para o fato de aquele pão já era. Estava sujo, molhado, babado. Porém ela continuava a segurá-lo e de vez em quando ainda o levava à boca. Se apegou àquele pedaço de pão, como se fosse seu único referencial de uma realidade concreta. Os punho fechado, segurando o pão podre, como se segurasse seu último quinhão de realidade.

Com a outra mão às vezes pegava outro pão e enfiava um pedaço imenso na boca. Mastigava-o por um bom tempo, como se fosse um chiclete, e não engolia. E ainda insistia em conversar com a boca cheia daquela massa de pão com saliva.

A festa acabou e Ilza jazia completamente torta e largada, ao relento, em um banco da pracinha da faculdade, ainda com o pão firme na mão. Alguns rapazes se riam a observá-la. Comentavam e faziam inúmeras piadas. Um deles, bem gordo e com uma aparência repugnante, de sujo, tirou o pênis para fora da calça e o passou em sua boca. Riram bastante e foram embora.

Mas não teve jeito, na segunda-feira o assunto principal era o fenômeno Ilza, a descabelada louca do pão. E esse foi uma espécie de apelido com o qual teve de conviver por algum tempo; além das lendas referidas ao episódio.

O tempo passou e sua história ficou conhecida como a da louca do pão. Diziam que ela tinha enlouquecido durante uma festa e não largou jamais um pedaço de pão, o qual levava por vezes à boca, já podre. Teria permanecido vagando pelas redondezas do campus, proferindo e profetizando sandices, sempre com o pão com lingüiça podre na mão, alimento de suas qualidades clarividentes. Uma santa louca, descabelada e de pão podre na mão.

Um quadro com sua imagem sacra e imaculada foi pendurado dentro do centro acadêmico. Assim, as festas e loucuras ali se passavam não sem inúmeros pedidos de proteção e reverências à santa louca do pão.

Monday, July 04, 2005

Os loucos 2 (Na vida de um beijo)

João Renato era machista, preconceituoso, grosseiro, insensível. Ninguém entendia por que havia escolhido estudar Psicologia. Era uma das primeiras visitas de nossa turma a um hospital psiquiátrico. Uma das internas, Claudete, ficou imediatamente fissurada por ele. Era baixa, bem gorda e forte. Tinha a boca muito grande e não tinha os dentes da frente. Transitava sempre com o mínimo de roupa possível ou até mesmo nua. Como a maioria dos pacientes, tinha a aparência intensamente afetada por seu histórico de doença mental.

João Renato não conseguiu disfarçar. Estava extremamente tenso com a abordagem de Claudete. Andamos por todas as alas do hospital e ela fez questão de nos acompanhar, de braço dado com ele. Não desgrudou um minuto. Ele não sabia como agir. Somente era capaz de fazer o que sempre fazia com qualquer um: transpirar indiferença, irritação e até arrogância. Claudete não deixava por menos: “Poxa, gatinho, vai ficar fazendo bico. Tô aqui te recebendo com o maior carinho na minha casa e você não é capaz de dar um sorriso?” E João Renato soltava um sorriso forçado, amarelo, quase perdendo a paciência. “O que foi, gatinho? Não gostou da minha blusinha. Se quiser eu tiro, fico sem nadinha, pra você”.

E Claudete ficou assim durante toda nossa visita, abraçadinha a João Renato e tentando agradá-lo com suas palavras carinhosas: “Ele é lindo né, gente”. Chegou a hora de irmos embora. E muitos dos internos mostraram sua insatisfação. Queriam que ficássemos. Estavam tão felizes com a visita, tão fascinados pela presença de gente do mundo fora, de jovens saudáveis e “bonitosque se dispunham a estar ali naquele momento. Sentiam-se honrados pelo mundo de vez em quando saber que existem, de haver qualquer contato. Uma senhora chorou. Aquela visita mexeu mais com eles do que conosco.

A despedida deu-se com muitas trocas de abraços. Porém o foco era João Renato e Claudete. Ela deu-lhe um abraço bem longo e, logo após, travando-lhe o pescoço com os braços, lascou-lhe um beijo na boca, bem molhado.

No caminho de volta à Universidade, João Renato não dizia uma palavra, estava absorto na experiência única pela qual houvera passado. Contudo, logo pudemos perceber que a pessoa mais afetada por aquela visita fora ele próprio. Passou, pelo menos em relação ao curso de Psicologia e à nossa turma, a mostrar uma outra face, que ainda não conhecíamos. Havia mudado. Com o passar dos meses pudemos ali perceber outra pessoa. Parecia mais aberto às diferenças, mais disposto a ouvir e experimentar coisas novas, mais sensível. E como, a partir dessa mudança, sofreu. Sua sensibilidade ficava à flor da pele. Funcionava com um pára-raios. Era capaz de mergulhar na dor dos outros, de gente indefesa, como ninguém. Desesperado e revoltado com as injustiças dessa vida, por vezes não sabia o que fazer. Sonhava romanticamente com um mundo melhor, e sua revolta era uma companheira eterna que nunca o deixava se acomodar. Uma criança indefesa frente a tantas coisas por se fazer.

Abriu-se para os outros e para a vida com uma coragem rara e tinha uma ânsia muito grande em consertar o mundo. Quantas vezes, nos anos em que convivemos pude vê-lo quebrando padrões, questionando a hipocrisia e uma série de contradições que compõem a vida social. Não queria acomodar-se, não queria ser cúmplice com o que era injusto ou egoísta. Possuia uma disposição enorme para o sacrifício, para doar-se, protestar e chamar a atenção para a injustiça.

Adentrou o movimento estudantil. Era dos militantes mais puros e sinceros. Mas muito revoltado. Fazia acampamento em frente à Reitoria e até greve de fome se necessário. Em protestos públicos e passeatas, apanhou da polícia algumas vezes e chegou até a ser preso. Foi perseguido por um diretor da Faculdade. Montaram uma comissão para avaliar sua sanidade mental. Argumentavam que talvez não tivesse condições psíquicas para exercer a profissão de psicólogo. Toda a faculdade se mobilizou em seu favor. Mesmo assim foi submetido a uma bateria de testes e de avaliações psicodiagnósticas. Nada de revelante foi constatado pela comissão e pôde receber seu diploma. Então os alunos se reuniram e fizeram uma grande festa para comemorar uma conquista que para João Renato havia sido tão sofrida: o direito de trabalhar como psicólogo.

Nos dois anos seguintes começou a trabalhar em um hospital psiquiátrico e passou na seleção para o mestrado. Continuou então na Universidade e não se afastou dos movimentos estudantis. Contudo, sua loucura parecia crescente. Realizava performances absurdas durante os protestos ou mesmo se dispunha a protestar sozinho, das formas mais bizarras possíveis. Exibia mensagens, seja em camisetas ou no corpo, muitas vezes incógnitas. O que antes era engraçado e excêntrico passou a ser visto com reservas. Mesmo os amigos mais próximos não entendiam o que dizia.

Durante as festas bebia um pouco, e antes que ficasse bêbado não hesitava em proferir discursos inflamados, em arrotar sua revolta para quem estivesse por perto. E a estas atitudes somava-se o ato de despir-se. Perambulava pelas festas completamente nu, como se nada estivesse acontecendo. Debatia com muita desenvoltura e inteligência sobre os mais diversos assuntos (filosofia, artes, política, história), porém, completamente nu. Quem não o conhecia ficava muito assustado: fugia ou ia aos poucos se acostumando, até percerber que João Renato era uma boa companhia. Era um maluco-beleza, um louco querido, que todos queriam por perto.

Entretanto, estava sendo tragado por um processo de enlouquecimento. não sabíamos distinguir entre o que era genial ou patológico. Até que um dia sua nudez e seus discursos insanos resolveram fugir do ambiente protegido das festas para ir sambar em frente à direção da Faculdade ou Reitoria. Não tardou e finalmente, um dia, João Renato foi internado. Ficou ao todo dois meses internado em um hospital psiquiátrico, público - mas que era modelo, um dos melhores do Brasil àquela época – e um ano afastado de suas atividades profissionais e acadêmicas.

Um dia reencontrei João Renato na rua. Estava novamente envolvido com teatro, artes e aplicando seus conhecimentos dessas áreas às oficinas que realizava no centro de saúde mental. Fiquei muito feliz e surpreso, pois parecia estar bem recuperado de toda a viagem que havia feito ao inferno. Conversamos por quase uma hora. Convidei-o então a dar uma palestra sobre seu trabalho e sua experiência junto a meus alunos.

Sua palestra foi excelente, inesquecível. É incrível como pôde absorver tudo o que lhe ocorrera em sua história de vida de forma muito construtiva. Era uma pessoa profundamente envolvida com sua profissão e com a vida de um modo geral. Falava com muita desenvoltura e ao mesmo tempo serenidade. E em um determinado momento da palestra lembrou-se, com muito bom humor e uma boa pitada de ironia, onde tudo havia começado, em sua experiência indescritível da primeira visita a um hospital psiquiátrico: “Na verdade aquele é que foi o meu primeiro beijo.”