Thursday, December 30, 2010

É igual picada de cobra




O nome dele era Jossen Auguste Renoir. Era um senhor de seus sessenta anos de idade. Mas nem aparentava tudo isso. Era alto, bem forte, totalmente careca e a barba branquinha. Pela complexão física aparentava uns 10 anos a menos. Somente pelas rugas no rosto é que podíamos ter uma ideia melhor de sua idade. Pelo olhar também. Era um olhar de quem tudo já vira e vivera nessa vida.
Viera para o Brasil ainda criança. Tinha histórias absurdas, tanto para o outro lado do oceano, como para este. Era belga de nascimento, carregava no lombo e na memória muitas histórias do povo belga antigo e medieval. Todas traziam sempre muita força, violência e morte em tudo o que se tinha vivido por aquelas regiões. Um de seus irmãos se suicidara com uma overdose de heroína, sua irmã fora para Amsterdã para viver como prostituta, seu irmão estava, na Europa, preso há cinco anos, com uma ficha criminal imensa, e delitos dignos de gênios do crime. Sua mãe, depois da morte de seu pai, em virtude do alcoolismo, também se prostituíra, convertendo-se a um protestantismo fanático e casto aos 42 anos de idade, e vindo, desde então, a seguir sua bíblia e a deixar seus cabelos a crescer e tomar conta de todo o seu corpo, na insanidade de fieis que são capazes das maiores sandices para manter acesa a chama de sua crença.
Era muito proveitoso sentar-se com ele e ouvir suas histórias absurdas, da sua vida trespassada de dores, sofrimentos lancinantes, amores, doenças venéreas, riscos de morte e quase todos os desvãos que se possa imaginar. Voltara para Bélgica aos 18 anos, e servira ao exército. Fora comandante de tanques de guerra, do exército de elite de seu país natal. Enfrentara os frios mortais em campos de treinamento na Alemanha, se metera por diversas vezes em brigas ou bebedeiras que sempre acabavam em merda.
Mas era, porém, de uma correção moral altíssima. Cultivava valores os mais nobres e honestos. Chegava a ser chato e obsessivo em muitas das exigências que fazia para consigo e com os outros. Era uma pessoa correta, íntegra, bom pai de família, como se toda sua correção fosse uma enorme reação às desventuras que a vida lhe apresentara. Ponderado, disciplinado, seja com suas contas ou com quaisquer prazeres sem esforços que a vida pudesse lhe oferecer.
“Sou um estóico, Adriano. Cultivo o prazer do esforço. Prazer, de graça? Não é saudável. É vicioso” – carregando no sotaque francófano misturado com flamengo. Frequentara por dois anos o curso de Filosofia da Universidade Livre de Bruxelas, na época em que servia ao exército, e desde então era um leitor praticante da área. Aficcionado por Nietzsche, já lera toda sua obra, no original, em Alemão.
Sua vida, porém, não foi um glamour. Fora expulso do exército, sob acusações de subversão, na época em que muitas ditaduras se espalhavam pela América Latina e aqui servira para dar sustentação àqueles regimes. História da qual eu pouco podia compreender, já que neste assunto sua linguagem se enchia de detalhes e dados técnicos. Consigo somente descrever isso, que ele havia sido expulso do exército belga, por subversão e que isso tinha alguma relação com os regimes ditatoriais presentes aqui na América Latina durantes as décadas de 60 e 70.
Desde então, desde os 23 anos de idade, sua vida se organizou bastante e resolveu cair no mundo. Viajou para os cinco continentes e conheceu tudo o que é coisa absurda. Comeu a apreciou insetos os mais diversos da culinária tailandesa, sabendo apreciar este alimento que sempre julgou divino e pouco aproveitado, devido a seu alto valor nutricional e como dieta ecológica. Namorou e amou perdidamente uma prostituta de Bankoc, da qual contraiu gonorreia. Praticou boxe tailandês, e entrou no rigue algumas vezes, por dinheiro, principalmente, apanhando muito em algumas lutas e conseguindo levar grana pra casa em outras; inclusive deixando o oponente ganhar em algumas, para faturar nas apostas, quando era tido como favorito. Ficou 7 dias sem comer na Índia, em um ritual de jejum, com orgias e não entendi mais o quê. Fumou ópio no Paquistão. Fez michê em Amsterdã (sim, ele era bissexual), sendo companhia de luxo de alguns diplomatas (aí pegava o dinheiro e torrava tudo em Bangok, com as maravilhosas tailandesas - como amou aquelas mulheres...). E outras diversas histórias absurdas das quais não me lembro agora.
Isso em cerca de quatro anos de andanças, até retornar ao Brasil e aqui voltar a se perder, só que agora sem dinheiro algum. Viu-se na miséria e não muito longe de sair pedindo pelas ruas. Até que reencontrou um amigo de adolescência, o qual estava a “desbravar” o norte do país, com agropecuária. E isso ainda no final da década de 70 e início dos anos 80, se é que compreendi bem esse cálculo meio conturbado de seus anos de vida.
Esse amigo lhe propõe trabalho digno e que ele nunca mais voltaria a ficar com a vida desorganizada. Recuperaria sua autoestima, sua honra e sua disciplina, marcas que sempre carregou durante toda sua existência e que agora tinham toda a oportunidade de recuperar seu vigor. Devido à vida no campo, estaria novamente em contato com a natureza, podendo assim levar uma vida mais serena e saudável. Topou a empreitada e partiu para a aventura de ajudar seu amigo, dono do capital, a desbravar os rincões de um Brasil desconhecido e selvagem, mas que esperava pelos “pioneiros do desenvolvimento”.
Assim, trabalhou alguns anos nessas precárias propriedades agrícolas, principalmente pelos sertões insólitos e inóspitos da floresta amazônica. Trabalhava principalmente como supervisor das equipes de segurança nessas fazendas, devido à sua experiência militar.
“Contraí tantas malárias que perdi a conta. Fora as picadas de cobra. E picada de cobra é assim: na primeira vez você acha que vai morrer, depois vai se acostumando.” (...) “Mas não posso reclamar dessa vida não. Fiz de tudo, por tudo o que é banda”.
“E não se arrepende de nada, seu Renoir?”, indaguei.
“Nada, Adriano. Nada...”, olhando-me profundamente com seus velhos e cansados olhos azuis.
Tempos depois, porém, voltava a essa questão, da culpa:
“Por que me sentiria culpado por alguma coisa de meu passado? Todos somos vítimas da existência, todos. Ninguém pediu pra nascer, ninguém escolheu isso. A existência foi nos enfiada goela abaixo. E culpa, pra ser sincero, acho que só aparece na perspectiva da punição. Se você acha que fez errado e que isso lhe trará enormes castigos ou prejuízos, que podem vir a saber, ou que você será dolorosamente punido por isso, aí a culpa aparece. Aí não tem como fugir. Mas quando tudo já passou, há tanto tempo, e que você compreende que fez o melhor que pode, não há muito espaço para culpa. Sei perdoar, aos outros e a mim mesmo.”
Dias depois:
“É, mas teve algumas coisas erradas que fiz nessa vida. Coisas das quais, confesso, me arrependo um pouco.”
“O que é, seu Jossen?”
“Um dia eu te conto...”
Em um certo dia:
“É, mas teve algumas coisas erradas que fiz nessa vida. Coisas das quais, confesso, me arrependo um pouco.”
“O que, seu Jossen? O senhor está com vergonha de me falar? São coisas sexuais? Com tantas histórias, se arrepender do que?”
Não entendi, pareceu-me que de repente, agora, ele estava com vergonha de tudo o que havia feito e que eu já sabia a maior parte. “Não é possível, ele, por senilidade, deve ter esquecido que me contou os fatos mais bizarros concebíveis”, pensei.
“O que, seu Jossen?”
“Matar pessoas”, respondeu, mantendo seu tom sereno de sempre.
“Na primeira vez é igual picada de cobra, você pensa que vai morrer. Depois você acostuma.”

Sunday, November 28, 2010

“A burrice é contagiosa”



“Se não estudar, vai puxar carroça”, minha mãe não se cansava de dizer. A meus irmãos não sei, mas a mim ela conseguia o que queria: apavorar. “Já viu que burro só serve pra puxar carroça?”. Os sermões dela eram longos, mais longos que os sermões de Fidel Castro. No final, quer saber, eu ficava morrendo de medo.
Aí fui pra escola: primeira série do ensino fundamental. No final da década de 70 trata-se do antigo 1° grau. Escola pública, a vida inteira. Era o EEPG João Augusto de Mello. O que, pra nós, alunos, eram simplesmente o Jamel ou João Melão. Eu morava no Jardim Independência, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Mas Jardim Independência era também, pra nós, outra coisa, era Jardel. Morava no Jardel e estudava no Jamel.
E não sei se você sabe, mas, durante um bom período, na época da ditadura, havia muita, mas muita repetência mesmo. Era um inferno. O sistema de ensino era tradicional, meio militar, e a repetência comia solta. A molecada tomava muito pau, muito couro, muita surra da vida, de cara. Como eu estudava em uma escola pública e de periferia, a porrada era ainda maior.
Minha mãe com seus sermões de quem iria ficar banguelo, com sorriso amarelo, puxando carroça, e eu atento às carroças, aos carroceiros e à sua miséria, aos cavalos dos carroceiros, mais maltratados ainda do que estes últimos. Outros nem carroça tinham e iam à pé, descalços, geralmente bem sujos, pedir “sobras de comida”. Sim, isso ocorria sim, desse jeitinho. Toda noite batiam à nossa porta, depois do jantar. Lá fora, daquela escuridão do cão, saiam as vozes dos pedintes, em famílias inteiras de maltrapilhos: “Tem sobra de comida?”. Não era “alguma coisa pra dar” ou “uma ajuda”, era “sobra de comida”. Pediam pelas sobras de nossos jantares apaziguados em nossas casas protegidas. E já tinham suas panelinhas, seus potinhos, onde receberiam nossa sobra geralmente gelada.
Minha mãe abria o portão e se disponha a conversar com estas pessoas: “Onde você mora?”, “Quantos filhos você tem?”, e a conversa se alongava. Até que um dia fez amizade com uma família inteira. Eram a mãe e uns cinco filhos ou mais. E todos viviam de sobras de comida. E todos eram muito sorridentes, maltratados e feios, mesmo os mais novinhos e bem crianças ainda. Minha mãe gostou deles, principalmente de uma que nunca havia aparecido, pois tinha vergonha de pedir. Era identificação: também passara fome em sua infância e muitas necessidades básicas haviam sido parcamente satisfeitas. Sabia bastante do que era a miséria e a vergonha de pedir. Pobre, orgulhoso, sofre dobrado.
Como também pouco tinha estudado, seus sermões eram em sua maioria voltados para o estudo. E assim fazia também no portão aos pedintes e seus filhos: “Você tá na escola?”; “Por que ela parou de ir na escola? O que aconteceu?”; “Precisa voltar pra escola...”, e assim a conversa ficava infinita.
Sermões longos, com muito carinho em alguns momentos e muito duros em outros: “Oh, minha doçura, na escola tem a merenda...”; “E você quer puxar carroça? Quer encher a barriga de filhos e depois ficar aguentando marido bêbado?”. Estes sermões tinham sobre mim um efeito assustador. Eu removeria montanhas para cumprir as missões delegadas por minha mãe. Era uma religião do esforço, da disciplina, da constante vigilância sobre nosso próprio comportamento, em busca de alcançar os cumes da virtude e da autosuperação. Nessa guerra eu era seu soldado mais fiel.
Porém, na escola, já na primeira série, no Jamel, eu mergulhei em um horror que eu pouco conhecia, o de repetir de ano. Havia muita repetência e os repetentes eram cruelmente humilhados e maltratados. Esta era minha percepção das coisas. Então adquiri rapidamente pavor de passar por tal martírio. Morrer? Sim, infelizmente um dia sim. Repetir? Jamais!
E assim, como todo bom soldado ou fiel, fiquei obsessivo. Chegava à mesa de merenda, para tomar aquele sopão ralo de macarrão parafuso e pedaços de batata, e a merendeira perguntava: “Quer repetir, filho?”; “Não, quero tomar de novo”. Eu jamais iria dizer que eu queria repetir, vê se pode. Repetir, esse verbo eu jamais usava em primeira pessoa. Vai que pega...
Assim, eu também tinha horror à burrice. Tinha pavor de ficar burro, de ser burro. Por quê? Porque o burro obviamente iria repetir e... puxar carroça. Os repetentes eram meus contra-exemplos, eram tudo aquilo do qual eu teria de fugir. Comecei então a fazer todas as tarefas de casa e prestar atenção absoluta no que a professora dizia. Comecei a estudar por dever, para evitar o mal. Tudo o que se faz por dever, não se faz por amor. Não foi por amor que comecei. Foi por amor à minha mãe e medo de suas profecias. Mas não por amor aos estudos. Era obrigação, missão divina, de vida.
Havia, na sala de aula ao lado da minha, um menino repetente que fazia o tipo mau e decadente. Era magro, comprido, o maior e mais velho de sua turma. Sempre sujo, sempre fedido e suado, sempre brigando e, como dizíamos, “catarrento”. Nossa, como a coriza escorria de suas narinas, adentrando a boca. Ele tinha um aspecto repugnante. Mas mais repugnante era a imagem mental que eu formava do infeliz: era um repetente e aquilo podia ser contagioso. Como não querer me manter longe? Como não ter pavor de contágio? Sim, eu tinha a obsessão de que a burrice era contagiosa.
Um dia esse menino estava brigando com outro, no recreio. Nosso recreio era selvagem. Corria-se demais, trocava-se muitos socos. Cada um tinha seus modos de se impor, de se fazer forte e de ser respeitado. Ele brigava com outro, e cuspiu-lhe na cara, mais precisamente na boca. A cena me deixou indignado. Eu jamais entraria em litígio com ele. Seu cuspe me oferecia muito mais perigo do que um soco na cara. Deus do céu, eu podia ser contaminado com sua burrice.
Sem contar o dia em que esse mesmo menino trombou com outro, em plena corrida, e bateu com força sua cabeça no chão, desmaiando. Minha memória do fato não deixa também de associar tal episódio com todo o mal que dele emanava: a batida de cabeça teria também deixado-o mais burro. Bater a cabeça era outro mal absoluto a ser evitado. Eu também brigava, eu também era habilidoso e sabia trocar bons socos e pontapés. Porém que não me batessem na cabeça, porque isso fazia eu perder qualquer conflito. Podia até estar ganhando uma briga, mas um golpe na cabeça era suficiente para me tirar do sério e do controle da situação. Porrada na cabeça, pra mim, era crime de guerra.
Assim, atravessei parte de minha infância fugindo da burrice, daquele mal do século...

Thursday, October 21, 2010

Serristas e dilmistas esclarecidos


Conheço tanto serristas quanto dilmistas esclarecidos. Ambos são muito bem informados e possuem autocrítica. Possuem argumentos razoáveis para se votar neste ou naquele candidato, e estão se esforçando como podem para entender o que está acontecendo no atual momento eleitoral. Contudo, mesmo serristas e dilmistas esclarecidos possuem, no atual contexto, concepções muito diferentes acerca do que sejam evidências significativas.


Digo evidências significativas para falar de eventos e informações as mais diversas, as quais são levadas em conta, por estes eleitores esclarecidos, no balanço geral que fazem dos dois modos de governar. O que pesa mais na balança (o que é significativo) deste eleitorado?
Sem dúvida, para este tipo de eleitor a opção de voto possui diversos determinantes. O eleitor que está tentando se guiar com base em informações e evidências as mais diversas está menos preso à troca de favores pessoais e ao fisiologismo. Em tese, ainda deseja se utilizar de sua racionalidade social e moral para decidir em quem vai votar. Contudo, exigir plena racionalidade, no caso do voto, é uma impossibilidade. Não somos oniscientes, não sabemos de tudo. Sempre nos faltará algum conhecimento ou informação. Em que medida poderíamos afirmar com tranquilidade que nossa amostra de conhecimentos é significativa? Ou que em nenhum momento estamos sendo relevantemente guiados por alguns argumentos de autoridade?
Serristas e dilmistas (esclarecidos) possuem referências (intelectuais, morais e de autoridade) diferentes. Suas redes sociais são diferentes. E eu pergunto para o eleitor esclarecido, bem informado, senhor de si: o que determina seu voto? Você acha que é somente a sua racionalidade? Doce ilusão... Seus amigos, votam em quem? Aquele intelectual que você tanto admira, vota em quem, apóia quem, pensa como? O que você tem lido nesses 16 anos? Se você mudar de lado, como irá justificar sua posição perante seus grupos de referência? Como você tem vivido nesses 16 anos de FHC e Lula? Como cada governo ou medida teve impacto em sua vida? Em que medida as mudanças que ocorreram em sua vida possuem de fato relação com o que estes governos fizeram? Quais são seus sonhos (principalmente os mais primitivos ou obscenos) e que relação eles têm com o que você imagina de cada proposta de governo?
Como contornar tudo isso? Como me informar mais, de modo mais independente e diverso? Onde encontrar tempo para tudo isso? Por que deixamos tudo para a última hora, para o ano de eleições? Enfim, assumo que tenho me informado e estudado pouco. Assumo minha impotência. Lamento acordar um pouco somente em ano eleitoral. Para mim não é mais tão simples votar e optar. Foi muito mais fácil em 1989 optar entre Collor e Lula, quando as dicotomias estavam mais bem delimitadas e estabelecidas.
Há poucos dias propuseram-me um debate. Eu defenderia meu candidato e um colega defenderia o dele. Uma coisa pra mim é muito clara: debate para defender este ou aquele candidato, eu não faço. Somente se for mesmo numa dinâmica, em uma brincadeira que favoreça a empatia e a escuta do outro. Debates políticos não são debates, são combates. Nesses casos, há mais fidelidade ao poder, à vitória, do que à verdade. Isso me desperta mais aversão do que interesse. Debater ou pensar, para me defender ou simplesmente defender este ou aquele interesse, opinião, ou narcisismo, é coisa da qual tenho procurado fugir. Prefiro continuar tentando ler e ouvir as mais diversas fontes: de Arnaldo Jabor à Carta Capital; de amigos que são de direita ao meu primo sindicalista da esquerda do PT. Parece-me que o voto esclarecido e, pessoalmente desinteressado, em Serra ou em Dilma, não caracteriza desastre, já que as referências intelectuais deste país estão divididas.
Para finalizar, eu espero que a sociedade e a militância civil sejam fortes o bastante para não dependerem somente de política partidária. Quando a questão é a luta desesperada pelo poder, a verdade tende a se perder.



Sunday, September 05, 2010

Com Deus não se brinca?



Em uma sociedade “temente” a Deus como a nossa, poucos ousam fazer tal pergunta. Nesse contexto, para a maioria, a resposta já vem pronta: “óbvio que não”. E é muito interessante prosseguir com o questionamento. Por que não? Por que não posso brincar com Deus? Por que não posso fazer piadas com o nome de Deus?

Uns dirão: “porque é sagrado”. E tudo o que é sagrado não pode ser tocado, violado, explorado ou investigado. Deve permanecer em total mistério, livre de perguntas ou curiosidade racional. Outros dirão: “porque trata-se de ter respeito”. E respeitar é não questionar? Não imaginar? Não brincar? Não suspender um pouco a realidade e testar os limites da forma mais segura possível: brincando?
Sim, porque o brincar está presente inclusive entre os animais não humanos. Até pássaros brincam. Trata-se de lutar sem estar lutando de verdade, de matar sem estar matando de verdade; de morrer sem estar morrendo de verdade. O brincar é instintivo e tem uma função biológica muitíssimo importante: conhecer sem se expor diretamente aos perigos da realidade. É uma forma de investigação, de exploração do mundo e de suas possibilidades. Brincando, testamos e ensaiamos para a realidade. Brincando, conhecemos mais, testamos mais.
Mas, voltemos à Deus. Ele não é perfeito? E o que é o perfeito? É aquilo a que nada falta. Nada falta à Deus. Então também não lhe falta bom humor, esportiva. Se Deus é perfeito, também tem bom humor, também sabe levar na brincadeira. Também sabe distinguir brincadeira de realidade. Ora, então por que não brincar com Deus?
A expressão “não brinque com” pode também remeter inconscientemente a “não brinque com fogo” ou qualquer coisa similar. Ou seja, se algumas pessoas pensam que não se pode brincar com Deus, isso deve-se às possíveis conseqüências aversivas da brincadeira. “Não brinque com Deus, pois você pode se dar mal”. Como assim? Ele pode castigar? E as pessoas que temem tanto assim a Deus, sem o sabê-lo, costumam ser as mesmas que vivem a dizer que Deus não castiga. Se não castiga, por que o temem tanto?
Penso que há alguns motivos básicos para não se brincar com alguma coisa ou alguém:
1. Essa coisa ou alguém podem ferir você. São poderosos e perigosos. São fortes, explosivos, impulsivos, vingativos. “Não brinque com fogo, pois você pode se queimar, se machucar seriamente”. Aplicando esse argumento a Deus: não brinque com ele, ele pode lhe ferir, lhe castigar”. E por que Deus iria ferir alguém que brincasse com ele? Seria revide, troco? Deus também revida? Também se defende e se vinga? É isso?
2. Essa coisa ou alguém pode ser ferido por você. Ou seja, não devemos brincar com o que é muito frágil e pode se quebrar. Então fica assim: “Não brinque com Deus, pois você pode machucá-lo”. E Deus é assim tão frágil?
3. Essa coisa ou alguém é completamente desconhecida. Trata-se do “não brinque (ou não converse) com estranhos”. Se você se julga, como muitos, íntimo de Deus, não há motivo para não brincar. O argumento é mais ou menos assim: “se brinco com meus amigos, pais, irmãos, com todos que me são íntimos, por que eu não brincaria com Deus? Se não brinco, é por que ele me é totalmente estranho?”.
4. Essa coisa ou alguém carece do mínimo inteligência. É incapaz de diferenciar brincadeira de realidade. Deus do céu, até os animais percebem essa diferença. Quando você corre atrás de seu cachorro ou rola com ele no chão, brincando, ele, mesmo sendo irracional, percebe que não se trata de um combate verdadeiro. Tanto que não lhe morde pra valer. E por que Deus não teria uma inteligência tão grande quanto a do seu cachorro de estimação? Fique tranquilo, pois ele com certeza sabe que é somente brincadeira.
Concluindo. Com Deus não se brinca? Se você não acredita nele e vive em uma sociedade livre e democrática, você pode, entre os seus, brincar tranquilamente. O estado não o executará em praça pública por isso. E nenhum conhecido ficará ressentido com isso, pois estará “entre os seus”, como sublinhei. Contudo, estando entre crentes (aqueles que acreditam em Deus), pode ser que você seja hostilizado, pois religião é um assunto deveras inflamado, uma ferida que já custou muitas e muitas guerras e milhões de mortos na face da Terra. Portanto, não custa ter cuidado.
Por outro lado, se você acredita que Deus castiga, que pode magoá-lo com alguma brincadeira, se não se julga íntimo dele, se acha que ele não é perfeito (pois lhe falta esportiva), ou que não entenderá a piada, é melhor mesmo não brincar com o todo poderoso.


Tuesday, August 10, 2010

A morte e o medo de ser esquecido



O que nos faz ter tanto apego à vida ou a ser lembrado? Mesmos os suicidas, de modo geral, não desejam ser esquecidos. E todos seremos esquecidos, mais dia menos dia. Daqui uns 100 anos a maioria das pessoas que hoje vive estará completamente esquecida. Não haverá mais qualquer rastro nosso por sobre a Terra. Essa é a regra.
As pessoas falam de como desejam ser sepultadas, de como querem ser lembradas. Mas se esquecem de que serão esquecidas.  E para que tanto desejo disso ou daquilo, se já não mais existirão? É o apego, o amor próprio, o qual revela seus tentáculos imaginários para além da vida. E sempre o desejo de não ser esquecido, esse mandamento irracional e desmedido do amor próprio, de nosso egoísmo fundamental.
Trata-se do sentido estóico da vida: perseverar nela. O sentido da vida é a perseveração nela. Todo ser vivo luta por se manter vivo. A vida seria assim compreendida como o conjunto de resistências à morte. E todas as resistências que levantamos inclusive para desesperadamente afirmar a existência improvável de nossa eternidade. Amor próprio, somente ele talvez explique os absurdos em que acreditamos para não aceitarmos nossa própria finitude absoluta: haja narcisismo.  Não acredito nesse sentido estóico para a vida. Penso que o princípio do prazer, concepção epicurista, é prevalente. Todo ser vivo, o qual possui percepção, busca prazer ou foge da dor. A perseveração e todas suas derivações são nada mais do que ressonâncias de nosso próprio egoísmo fundamental.
Acho mais madura e humilde a concepção de que com o fim da vida, tudo acaba. De que tenho começo, meio e fim. Por que eu seria infinito, dotado de alma eterna, e os protozoários e vermes não? Arrogância especista. Humanismo infantil. Por que o ser humano seria assim privilegiado, mais especial do que todas as outras espécies? Então somos eternos e o resto não? Como assim? Se o sofrimento iguala todas as espécies que são sensíveis, o que nos faria assim tão diferentes e melhores? A racionalidade? Sim, somente se for para nos autoenganar acerca de nossos próprios limites enquanto seres vivos, seres que morrem, que acabam.
Contudo, compreendo um pouco até onde vai nosso amor próprio, nossa paixão cega por nós mesmos, nosso narcisismo. Como aceitar que nossa vida e a de quem amamos, que tanta beleza, complexidade, singularidade e profundidade possa se desfazer? Pois é exatamente isso o que sentimos em relação a nós mesmos e a quem amamos: beleza, complexidade, singularidade e profundidade. Somos humanos, seres portadores de consciência reflexiva (sabemos que existimos e que morremos) e somos também seres sociais. Nossa existência assim concebida e a presença do outro são vividas em estado de imensidão.
Psicologicamente somos vastidão e profundidade incalculável para nós mesmos e para quem nos ama. E é amando e se envolvendo com pessoas que sentimos a presença constante do infinito na identidade singular que cada ser humano possui e carrega consigo. Cada um é um. Ninguém é igual a ninguém. Parafraseando Drummond, todo ser humano é um estranho, absurdo e infinito ímpar. A singularidade da existência de cada um é uma ressonância de infinito, traduz as possibilidades infinitas de existência. E assim fica talvez difícil não acreditar na eternidade. O amor produz profundidade e sentimentos de eternidade. Amar é ver o abismo que é o outro. Não tem fundo. Não tem limite. Apaixonar-se é cair nesse abismo. E de tão apaixonados que somos por nós mesmos, nos acreditamos como eternos.
Só dá para escapar das contradições dessa concepção se admitirmos que tudo é eterno, de que há um outro mundo, paralelo a este, fonte deste e eterno. O mundo platônico das ideias, das almas de tudo, a fonte de tudo. E este mundão aqui seria isso mesmo: repleto de mudanças e mortes.
Mas as pessoas se angustiam e não se cansam de perguntar sobre o que será o futuro, e o que será após a morte. Para onde vamos depois que morrermos? Para o mesmo lugar de onde viemos antes de nascermos. Todos se perguntam sobre o que será após a morte, mas ninguém se pergunta sobre o que foi antes de ter nascido. E, confesso, tenho pensado muito sobre o que “fui” antes de ter nascido. Um pensamento me deixar muito consolado: não fui nada, eu não existia. E voltarei a não existir após minha morte. A coisa que mais fiz, na existência de tudo, foi não existir. Pensando assim aceito melhor minha finitude e o esquecimento completo de meu ser. Posso desejar o que for dentro da minha pequenez diante de tudo, contanto que sejam desejos para mim mesmo e não para o mundão lá fora.

Sunday, August 01, 2010

“A vida é curta”?



Nem curta, nem longa. Sem ensaio, replay, nem prorrogação, ela é o que é: uma só. Esse “uma só” é negado por muita gente. E aí pode ser que advenha o lugar comum de que ela é curta. Como não podemos ensaiar, nem fazer de novo (recomeçar do zero), parece que é curta. Como não podemos viver outra vez, uma segunda vez, pode parecer que é isso: curta. Eis o juízo de valor, a definição particular, subjetiva. Curta? Pra quem? Comparado a que? O que é curto para uns pode não ser para outros. O que as pessoas estão tentando dizer quando assim enunciam?

Não há coisa mais subjetiva e individual do que a vivência do tempo. É a temporalidade, o como cada um experencia a passagem do tempo. O que demora mais: uma hora namorando ou uma hora a padecer na cadeira do dentista? Ah, sim, “tudo o que é bom passa rápido”...

Cena típica: imagine uma criança a se divertir intensamente em uma festa ou parque de diversões, quando chegam os pais e anunciam que o tempo acabou, que já é hora de ir embora. Ela já vai aprendendo cedo o lugar comum: “tudo o que é bom acaba rápido”. Assim como os adultos que vivem a dizer que a vida é curta. Não querem deixar o parque de diversões da vida ou tudo aquilo que ela poderia ter sido e não foi. Ainda não se satisfizeram. A insatisfação com tudo o que a vida poderia ter nos dado pode nos fazer dizer: “a vida é curta”.

Sim, curta. “Não fiz tudo o que eu poderia ter feito”. “Não tive uma segunda chance, ou um tempo a mais, para tentar de novo”. “Não aproveitei o suficiente”. Mas também que saco esse mandamento atual de aproveitar ao máximo, tirar tudo o que a vida pode dar. Parece maximização de lucros. Quanto mais você tirar da vida, mais lucro você tem.

E nessa trilha não faltam também as imagens estereotipadas do que seja aproveitar a vida: viajar para tudo o que é lugar, explorar todas as infinitas distâncias do planeta (e acima de tudo, gabar-se por isso, mesmo que de modo disfarçado); enfrentar as maiores adversidades em espírito esportivo e elegante de aventura, com demonstração suprema de saúde e superação do restante dos mortais (enfim, poder...); viver as emoções intensas todas que a vida humana, ou sobrehumana, pode proporcionar; arriscar, estar sempre um passo além; sentir-se vivo em toda a intensidade possível; estar no cume dos mundos e pode urrar de prazer ou alegria. Eis o estereótipo mais comum do que seja aproveitar ou viver bem a vida.

Costumo fazer essa pergunta às pessoas: “O que é aproveitar a vida pra você”? Grande parte, obviamente, traz este estereótipo: viver o máximo possível em altíssima intensidade. Costumo pedir por imagens: “Que imagem lhe ocorre quando você pensa no que é aproveitar a vida, pra você?”. Há quem cite imagens de coisas totalmente distantes de seu cotidiano ou mesmo ausentes em sua própria história de vida. Citam coisas absurdas, megalômanas, que nunca fizeram. Como se a imagem do que é aproveitar a vida estivesse somente estampada nas revistas de celebridades. Outros citam imagens do que já viveram e padecem de nostalgia. E há também os que citam coisas de seu próprio cotidiano, muitas vezes bem simples, as quais habitualmente visitam ou realizam.

Os primeiros, convenhamos, não devem estar felizes. Os nostálgicos, por sua vez, não se cansam de dizer que eram felizes e não sabiam (o que também, penso eu, está carregado de ilusões). E os últimos são os que, de modo geral, sem muitos artifícios ou arsenais de felicidade, estão aproveitando a vida em sua simplicidade e dentro do que ela pode dar.

Agora, se me perguntassem o que é aproveitar a vida, pra mim, em uma imagem, eu responderia: “Pra mim, aproveitar a vida é boiar”. Sim, boiar. Quando estou flutuando, na água, com os ouvidos imersos e a cabeça imersa no universo, sinto que estou aproveitando a vida em sua plenitude. Isso mesmo, desse jeitinho: quieto, isolado e casado com o universo, seja lá como isso tiver de acontecer: boiando, correndo, namorando, escrevendo, comendo, conversando, dormindo, caminhando, capinando ou mesmo lavando louças.

Thursday, July 15, 2010

Projeto de lei que proíbe a palmada. Parte 2: O que a Psicologia tem a dizer sobre isso?



Há quatro anos escrevi um pequeno artigo sobre este projeto de lei:

Tal texto era fruto de minha participação em um debate, na Tv Nacional, no Programa Diálogo Brasil. Àquela época levantei algumas questões, tanto de cunho ético quanto jurídico.
Contudo, devo ressaltar, eu ainda tinha pouco conhecimento acerca das contribuições da Análise do Comportamento sobre o tema da punição. É sobre isso que pretendo tratar no presente texto.
Penso que o termo palmada, neste debate, está fetichizado. Ou seja, valorizado em excesso. Fala-se muito, e de modo pouco consistente, acerca das ditas palmadas, como se elas em si, e sozinhas, fossem capazes de produzir danos psicológicos. Quem assim pensa, nos diz o bom senso, está muito equivocado. Não se trata, obviamente, da palmada em si. Trata-se de punições físicas. Um questionamento de cunho ético, repito, é o seguinte: "Se é proibida a punição física para adultos, por que seria permitida para as crianças? Onde fica a dignidade da criança? Por que, neste aspecto, ela não teria o direito de igualdade com os adultos?”.
Em termos legais, muitos também podem questionar: “Uma lei como esta, a qual proíbe que um pai dê uma simples palmada em um filho, não é muito invasiva? Onde ficam as pressupostas garantias legais referentes às liberdades individuais e à privacidade?”.
O debate consistente, como já disse antes, deverá enfrentar estas questões.
Contudo, farei alguns ajustes em minha fala sobre as contribuições da Psicologia. Ela tem algo a dizer sobre esta questão? Sim, com certeza. E esta certeza passei a tê-la depois que comecei a estudar a Análise do Comportamento.
A punição é um conceito que foi e é intensamente pesquisado pela Análise do Comportamento. Desconheço outra área ou abordagem que possua um número tão grande de pesquisas consistentes sobre o tema.
Primeiramente, devemos começar pelo conceito de punição. O senso comum quase sempre o reduz à punição física. E eis aí o grande erro, muito presente nos debates equivocados sobre este projeto de lei. Indo um pouco mais além, poderíamos, em termos bem comuns, assim definir a punição: tudo o que é penoso, desprazeroso, e que é imposto a um determinado sujeito, em função de alguma falta ou erro cometido.
A Análise do Comportamento possui a definição mais objetiva e precisa que conheço: punição é toda consequência aversiva de determinada ação ou comportamento.
Explico melhor. Não se trata simplesmente de faltas ou erros, pois aí já existe um juízo de valor. Todo comportamento do sujeito que tem como consequência algo aversivo, está sendo punido. Se seu filho grita e você lhe dá uma bofetada (a qual ele sente como dolorosa, aversiva), ele está sendo punido. Se você sai na rua e é assaltado, e isto lhe é aversivo, você está sendo punido. Se um pai compara um filho com o outro, e um deles se ressente: está sendo punido. Se o aluno teme ir à lousa, e a professora o obriga: está sendo punido. Se um filho diz algo que ofenda o pai: está punindo-o. Se este pai se comporta como ofendido e triste pelo comentário do filho, e este se culpa pelo ocorrido: está sendo punido pelo comportamento de tristeza que provocou no pai.
Enfim, se há um comportamento e este possui uma consequência aversiva para um determinado sujeito, eis a punição. E ela pode ser tanto positiva quanto negativa. O termo positivo, veja bem, indica acréscimo, presença, adição. E o termo negativo indica retirada, subtração. Esses termos são adotados em seu sentido descritivo, científico, e não moral. Não se trata do positivo ser o bom e o negativo ser o ruim. Pois, se assim o fosse, um resultado de HIV-positivo seria motivo para alegria, não é verdade?
Então, é punido positivamente todo comportamento ao qual é acrescentado uma consequência aversiva. E é punido negativamente todo comportamento em que uma consequência agradável para o sujeito é retirada. Exemplo: o filho diz ao pai algo que o magoa, e o pai, como consequência, deixa de sorrir para o filho: punição negativa. O filho grita e o pai lhe dá uma bofetada: punição positiva (e repare que a punição positiva é mais aversiva, violenta, que a negativa).
Bater nos filhos é uma punição positiva. O comportamento do filho é consequenciado com a apresentação de estímulos aversivos (bater, a surra, as palmadas). Isso se as palmadas forem aversivas para o sujeito em questão. Para alguns é mais doloroso o sermão, a humilhação. Deixar o filho de castigo, sem poder assistir televisão, é uma punição negativa. O comportamento do filho é consequenciado com a retirada de estímulos agradáveis (televisão, no caso). E todo comportamento punido tende a diminuir de frequência.
Ou seja, se a punição é capaz de fazer com que um comportamento indesejável diminua de frequência ou até mesmo se extinga, então ela é eficaz? Sim, para a situação específica em questão e a curto prazo. Você resolve o problema, aquele ali, do momento e (segundo incontáveis dados de pesquisa) cria vários outros. Sim, a punição possui diversos efeitos colaterais indesejáveis. Eis alguns deles abaixo (os quais procurarei explicar com termos bem coloquiais):
1. A produção de respostas emocionais em excesso: o sujeito punido tende a ficar muito alterado emocionalmente frente a situações de punição ou similares ao contexto em que sofreu estimulação aversiva. O medo, em excesso, é totalmente contraproducente. O sujeito treme, gagueja, hesita, tem “brancos”, não consegue se concentrar, etc. Ou seja, fica muito incapaz para aprender. É, de modo geral, paralisante.
2. A inibição de repertório comportamental: o sujeito punido pode generalizar a experiência aversiva para outros contextos, o que vai somente aumentando sua restrição comportamental. Passa a “travar” também em outras situações. Muita punição tende a gerar inibição geral (vergonha e ansiedade frente a diversas situações são alguns exemplos mais notórios). O professor repreende a criança na sala de aula e esta criança pode generalizar a experiência para todo o ambiente escolar. Não custará, em muitos casos, acontecer dela dizer que não gosta mais da escola, de estudar, ou coisa parecida. O professor que não consegue ver seu esforço gratificado, também pode se sentir punido e passar a generalizar para a profissão como um todo: “Detesto ser professor”; “É um martírio...”; “Os alunos são malcriados, sem educação, violentos...”. E isso tem ocorrido muito: os ambientes escolares, principalmente públicos, tem sido muito aversivos, tanto para alunos quanto para professores. A violência contra professores tem aumentado em frequência. Dado extremamente preocupante. Ou seja, professores punidos, logo menos motivados.
3. A punição possui baixo valor informativo. Quando um cão pula no dono e este levanta o joelho para que o animal sinta a dor da pancada no peito, a tendência será o animal deixar de pular nas pessoas. Resolvido o problema de pular nos outros. Mas a questão é a seguinte: o que se aprende ao ensinar alguém a deixar de fazer algo? Com a punição o sujeito deixa de fazer coisas. Não aprende algo novo, a fazer algo novo.
4. A punição é, de modo geral, aleatória, pois o mais eficaz é encontrar as causas, as motivações para um determinado comportamento, e isso a punição não faz. Se a criança gritar e espernear e for punida, se agirá simplesmente sem se saber o que causa este comportamento de birra. As pesquisas demonstram com clareza: o mais eficaz é encontrar os motivos da birra e subtraí-los. E os motivos não são o fato dela não ter podido, por exemplo, tomar sorvete. Não ter podido tomar sorvete é o que, para o senso comum, causa a birra. Para a Análise do Comportamento, os comportamentos são, na grande maioria dos casos, mantidos por suas consequências. A criança faz birra em função da consequência. Se esta consequência for favorável à criança, logo ela tenderá a manter seu comportamento de birra. Ou seja, se fazemos assim ou assado é porque ganhamos algo bom com isso ou evitamos algo ruim. Se o sujeito faz é porque esse comportamento tem ou já teve função em sua vida.
5. Contracontrole: o sujeito pode fazer uma boa discriminação de contextos e somente se comportar do modo desejado nas situações em que o punidor está presente. É o famoso jeitinho. É a famosa arte de somente fazer “o correto” quando o pai ou o chefe estão por perto. Depois volta tudo a ser a mesma porcaria de sempre. Os radares para redução de velocidade no trânsito são os exemplos mais utilizados: a maioria dos motoristas só tira o pé do acelerador quando ele está em cima.
Não continuarei a lista dos efeitos indesejáveis da punição, a qual deve estar obviamente incompleta. Foi somente para dar uma noção básica da coisa. Para muitos fica a seguinte questão: um ambiente ou relações totalmente livres de punição são possíveis? De forma alguma. A punição está sempre presente em nossa vida, seja no ambiente físico, natural, ou nas relações entre as pessoas, nos seus mais sutis detalhes, como pudemos ver em alguns exemplos que dei. Contudo, uma coisa é certa: vale a pena diminui-la, e há comprovadamente procedimentos alternativos a ela. São eles: o reforçamento diferencial, o reforçamento positivo e a extinção, somente para citar os mais importantes.
Falar de cada um deles, contudo, já é tarefa para um outro texto.
A Análise do Comportamento é uma área já bastante desenvolvida e produziu conhecimentos sobre os quais não podemos negar sua utilidade, tanto prática quanto teórica.
Falar sobre dar ou não palmadas em filhos, e deixar de contemplar esses importantes conhecimentos produzidos por esta área de estudo, seria omitir uma história muito relevante dentro da Psicologia.

Monday, July 05, 2010

Deus e a questão do mal

A questão do mal é uma questão clássica em metafísica e filosofia cristã. Uma definição plausível para o mal é concebê-lo como toda e qualquer forma de sofrimento. Se algum ser sofre, eis o mal. Alguns objetarão: não, o mal diz respeito somente aos sofrimentos injustos ou injustificados. Pois “há males que vêm para o bem”, e estes seriam os justificados, os sofrimentos que possuem alguma utilidade. Exemplo: você vai ao dentista, sofre um pouco, mas previne males muito maiores. Mas a grande questão é que há males, sofrimentos, cuja utilidade não compreendemos, e cuja injustiça também é alarmante. E eis aí a questão: se Deus pode tudo e é absolutamente bom, por que permite injustiças incompreensíveis, irracionais e que causam tanto mal? Males inúteis, por que os permite?

Em termos lógicos, há uma resposta básica: não dá pra Deus ser ao mesmo as duas coisas. Ou pode tudo e não é absolutamente bom, ou é absolutamente bom e fraco. Como já vimos no texto anterior, a onipotência é racionalmente impossível, não tem cabimento. Mas, por ora, suponhamos que seja. Se assim o fosse, teríamos de lidar com uma possibilidade absurdamente assustadora: a de um Deus onipotente, absolutamente poderoso e que também possui maldade. Ou seja, pode castigar-nos quando bem quiser, e sem muita justificativa. Essa possibilidade gera muito medo. Imaginem só: um Deus tirânico, caprichoso. Um Deus que também é mau. Um cara absolutamente poderoso e que pode arruinar com sua vida e torná-la um pesadelo sem fim. Deus do céu, esse seria um Deus dos infernos para seus desafetos. Sim, pois se não é absolutamente bom, Ele também teria desafetos.

Esse Deus onipotente, e que não é absolutamente bom, submete a todos, por medo. A crença nele é forçada pelo medo de ser aniquilado. O ato de entrega e fé, é um ato de render-se a algo maior que você e que pode lhe destruir. Lembro do personagem de Tv, o médico Gregory House, assim dizendo aos crentes: “Vocês acreditam em Deus porque temem que Ele os esmague como formiguinhas”. É a fé motivada pelo medo. Pelo medo de desobedecer ao todo poderoso e ser castigado.

Porém, se continuarmos pela linha de raciocínio do texto anterior, a onipotência não tem cabimento. Então, esse ser todo poderoso não existe e nada precisamos temer de infalível e eterno. Assim nossa miséria fica menor, penso eu. Melhor saber que Deus, mesmo que existisse, não poderia tudo. Melhor, muito melhor. Quem pode tudo não dá alternativas a quem não pode nada, a não ser calar a boca, obedecer e fim de papo. Me sinto muito melhor com essa ideia de que ele não pode tudo. Isso me dá muito mais liberdade para continuar pensando e seguindo a trilha da lógica, da sensatez. Permite a liberdade e a responsabilidade, esses dois fundamentos tão importantes da maturidade. Se ele não pode tudo, temos liberdade. Do contrário, estamos eternamente amordaçados.

Como a onipotência é uma impossibilidade, somente nos resta a alternativa mais suave e sensata: ele não pode tudo e é absolutamente bom. É fraco, como nós, porém absolutamente bom.

Mas Deus como fraco e absolutamente bom, ainda nos deixa algumas questões. Como uma entidade absolutamente boa pode ter criado o homem, com todas suas imperfeições e injustiças? Comte-Sponville, no “Pequeno tratado das grandes virtudes”, levanta algumas questões interessantes, em belíssimas e instrutivas passagens (1995, p. 292 – 294):

“Por que Deus iria criar o que quer que seja, se ele mesmo é todo o ser e o todo o bem possíveis? Como acrescentar ser ao Ser infinito? Bem ao Bem absoluto? Criar só tem sentido, nessa lógica da potência, desde que para melhorar, pelo menos um pouco, a situação inicial. Mas é o que Deus, mesmo onipotente, não poderia fazer, pois a situação inicial, sendo o próprio Deus, é absolutamente infinita e perfeita! Alguns imaginam Deus, antes da criação, como insatisfeito consigo, como um aluno exigente que escrevesse, à margem de seu próprio dever ou de sua própria divindade: “Pode fazer melhor”… Mas não: Deus não pode fazer melhor do que ele é, nem mesmo igualmente bem (pois teria então de criar a si mesmo, portanto não criar absolutamente nada: é esse, talvez, o sentido da Trindade). Deus, se quiser criar outra coisa que não ele, isto é, criar, só poderá fazer menos bem que si mesmo. Melhor dizendo, ou pior: Deus, já sendo todo o bem possível e não podendo, por conseguinte, aumentá-lo, só pode criar o mal! Daí este nosso mundo. Mas então: por que cargas d’água tê-lo criado?

Esse problema é tradicional. Mas talvez ninguém o tenha percebido melhor, nem resolvido melhor, se é que se possa fazê-lo, do que Simone Weil. O que é este mundo, pergunta ela, senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)? Deus só pôde criar o mundo retirando-se dele (senão só haveria Deus); ou, se nele se mantém (de outro modo não haveria absolutamente nada, nem mesmo o mundo), é sob a forma da ausência, do segredo, da retirada, como a pegada deixada na areia, na maré baixa, por um passeante desaparecido, única a atestar, mas por um vazio, sua existência e seu desaparecimento… Temos aí uma espécie de panteísmo em negativo, que é a recusa de qualquer panteísmo verdadeiro ou pleno, de qualquer idolatria do mundo ou do real. “Esse mundo enquanto totalmente vazio de Deus é Deus mesmo”, e é por isso que “Deus está ausente, sempre ausente, como indica de resto a famosa prece: “Pai nosso que estás no céu…” Simone Weil leva a expressão a sério, e tira dela todas as conseqüências: “É o Pai que está no céu. Não em outra parte. Se acreditamos ter um Pai aqui na terra, não é ele, é um falso Deus.” Espiritualidade do deserto, que não encontra ou não prega mais que “a formidável ausência, por toda parte presente”, como dizia Alain, a que responde, em sua aluna, esta fórmula surpreendente: “É preciso estar num deserto. Pois aquele que é preciso amar está ausente.” Mas por que essa ausência? Por que essa criação-desaparecimento? Por que esse “bem feito em pedaços e espalhado através do mal”, estando entendido que bem possível já existia (em Deus) e que o mal só existe por essa dispersão do bem, pela ausência de Deus – pelo mundo? “Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a como uma distância”, escreve ainda Simone Weil. Que seja. Mas por que essa distância? E, já que essa distância é o próprio mundo, enquanto ele não é Deus (e ele só pode ser o mundo, evidentemente, desde que não seja Deus), por que o mundo? Por que a criação?

Simone Weil responde: “Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou outra coisa que não o próprio amor e os meios do amor.” Mas esse amor não é um mais de ser, de alegria ou de potência. É exatamente o contrário: é uma diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. O texto mais claro, mais decisivo, é sem dúvida este:

“A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.

As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras.” “

E isso tudo Comte-Sponville escreveu somente para tentar compreender um pouco melhor o amor como ágape (caritas), o amor de Deus, uma das três grandes classificações antigas do amor.

Como minha linha de raciocínio contemplava a ideia de um Deus fraco e absolutamente bom, pretendo encerrar esse texto com ela. Se ele é absolutamente bom, porém fraco, também morre?

Referência:

Comte-Sponville, A. (1995). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.

Sunday, July 04, 2010

Onipotência divina

Muito comum se ouvir que Deus é onipotente, onisciente e onipresente. Acerca da primeira qualidade existe um argumento interessante: se ele é onipotente, se ele pode tudo, pode também construir uma pedra que não dê conta de carregar? E eis o paradoxo: se sim, logo não pode tudo – pois não poderia carregar o que criou. Se não, logo também não pode tudo, pois não é capaz de construir a tal pedra. Logo, concluindo, não é onipotente. Isso nos faz pensar que não existe algo ou alguém onipotente. A onipotência não existe, não tem cabimento. Se Deus existe, não pode tudo. É mais humano do que imaginamos. Também erra e também falha. Logo, pode ser que também nos deva desculpas, em alguma circunstância ou condição. E se ele, em algum momento ou aspecto, nos deve desculpas, o que fazer para perdoá-lo?

O que não é a felicidade

Segundo Comte-Sponville, “a felicidade não é nem a saciedade (a satisfação de todas as nossas propensões), nem a bem-aventurança (uma alegria permanente), nem a beatitude (uma alegria eterna).” Comte-Sponville.

Ou seja, neste sentido, todas estas três concepções acerca do que seja a felicidade são equivocadas. A primeira e a segunda concepção são as mais comuns. São talvez também (vejam a ironia) as que produzem mais infelicidade. Produzem infelicidade, primeiramente, pelo simples fato de serem equivocadas. Assim, geram falsas expectativas, o que, por sua vez, é mais do que suficiente para a ocorrência de alguns desastres e surpresas desagradáveis. Quem não se prepara com perspectivas realistas está sujeito a surpresas desagradáveis.

As concepções de felicidade como a satisfação de todos os nossos desejos ou uma condição de alegria permanente são pouco refletidas, sensatas ou até mesmo infantis. Há o pensamento mágico implícito aí, de que diversas situações complexas podem ser resolvidas com atos simples e instantâneos, os quais dispensam qualquer explicação, esforço ou processo. Em termos psicanalíticos seria a fantasia de retorno ao estado original do recém-nascido que se satisfaz e se ilude acerca de sua própria condição de ser. Tendo suas necessidades satisfeitas, é tomado por sentimentos de onipotência, plenitude e invulnerabilidade (o narcisismo primário). Onde nem mesmo o mundo externo (incluído aí o outro) se configura como perceptível (como outro) e capaz de aniquilá-lo.

Seguindo as pistas dadas por Freud em “O mal-estar na civilização” (1930), podemos dizer que a busca por esse tipo de felicidade é um modo de se apartar da realidade. Acreditando nesta possibilidade absurda, o sujeito nega a realidade que o circunda, e passa a se devotar a uma fantasia infeliz. Trata-se de uma fantasia que abre mão da consciência e instala o sujeito em um terreno sem qualquer sustentação. Sim, constrói castelos no ar. São concepções bastante otimistas acerca do que seja a felicidade. Otimistas e míopes. Otimistas e bem pouco esclarecidas. Aliás, como todo otimismo extremo e equivocado.

Tuesday, June 01, 2010

Superstição: se dizer, acontece?

A pergunta parece meio tola mas, na prática, a maioria das pessoas tem alguma forma de superstição. Há aqueles, por exemplo, que jamais falam a palavra “desgraça”, pois, segundo seus avós, seus pais, os mais antigos (ou seja lá porque), ela apareceria debaixo da mesa. Nossa, quanto disparate. Há também os que não passam debaixo de escadas, fogem do número 13, começam com o pé direito, saem pela mesma porta, e por aí vai uma série quase infinita de superstições.

Neste pequeno texto quero falar daquela que se refere à ideia de que dizer gera o acontecer. Ou seja, se você dizer, a coisa acontece. Há inclusive pessoas que, obsessivas, padecem terrivelmente. Não dizem nunca certas palavras ou repetem inúmeras vezes aquelas que soam como benéficas; ou até mesmo falam e “desfalam” o que sinaliza o mal: se pronunciam algo maldito, logo o repetem, para poder desdizer o que foi dito antes. Enfim, nesses casos não faltarão compulsões (fazer isso ou aquilo, repetidamente) para desfazer o incômodo das obsessões (ideias fixas e incômodas, as quais escravizam e torturam o sujeito).

Uma das situações mais risíveis das quais lembro reporta-se à ocasião em que, com vários amigos em uma mesa de bar, o assunto era como cada um gostaria de morrer. E, obviamente, a maioria respondia que preferia uma morte rápida e repentina: “Quero morrer dormindo...”, eis um exemplo mais do que comum, só para não citar os outros tantos, menos óbvios. Mas eis que um dos que estavam à mesa expele sua pérola: “Quero morrer queimado ou afogado”. Alguns da mesa ficaram boquiabertos, principalmente os mais religiosos: “como ele pode dizer uma coisa dessas, que loucura...”; “bata a mão em sua boca”; “não diga um coisa dessas”; “com essas coisas não se brinca”.

Esse amigo é a pessoa mais destituída de superstição que conheço. E ele sabia muito bem o que estava fazendo. Ficou quieto, olhando para todos nós com seu sorriso debochado. Não disse mais nada, pois voltaria a sempre dizer o que já estava cansado de saber: não é porque você disse que a coisa acontece. E a gente sempre se esquece disso e, vez ou outra, fica com medo. Se dizer alguma coisa ou enunciar algum desejo gerassem sua realização, por si só, bastaria dizer “quero ganhar na loteria” e assim o seria. E olha que as pessoas repetem seus desejos aos milhares e o destino de tudo quase nada tem a ver com isso. Eis o pensamento mágico e infantil, o qual ainda sobrevive em nós, de algum modo. Em alguns mais e em outros menos.

Sunday, May 16, 2010

Felicidade: o papel da autoavaliação

A felicidade é um tema muito interessante e fecundo. Trata-se do bem supremo? Ou seja, possui mais valor e está acima de tudo o mais? Há algo mais importante do que ela? Segundo Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” (citado por Comte-Sponville, 2001, p. 01). Ou seja, na concepção pascalina, para a realidade humana, é o motivo de tudo, só isso. Há, entretanto, diversas possibilidades de abordagem do tema, a começar pelo conceito, pelas várias definições e usos possíveis do termo felicidade.

O que é a felicidade? Começo pela definição que cunhei há alguns anos, pois ela incide diretamente sobre a questão da autoavaliação. É um balanço geral do espírito com saldo positivo. Após toda ponderação e avaliação possível, poderia se considerar feliz aquele que percebesse em si mais alegria do que sofrimento ou tristeza. Esta é um concepção que atrela a felicidade ao julgamento. Se julgo, se avalio que tenho mais momentos de alegria e prazer do que sofrimento e tristeza, logo me julgo feliz. Ou seja, a felicidade depende da avaliação que o próprio sujeito faz de todo o seu estado de espírito.

Em “O mal-estar na civilização” (1930), Freud, logo de início, suspeita do conceito. Percebe aí um grau muito elevado da subjetividade de quem está se avaliando. Se a felicidade é resultado de uma autoavalição, logo depende mais de como as pessoas julgam sua vida, ou de como se referem a ela.

Em termos comportamentais, alguém pode falar que sua vida está boa ou ruim em função do que obtém ou já obteve na vida com este tipo de comportamento. Já pude observar que em contextos religiosos, por exemplo, é muito comum os fiéis dizerem que estão muito felizes. Há, de modo geral, pressão para isso em contextos religiosos. Já em outros contextos dizer que não se está feliz, que não se está bem, pode ser mais valorizado do que o contrário. Exemplo: o sujeito sempre diz que está infeliz, que nada está bem, pois isso resulta em mais atenção e cuidados de seus próximos. No primeiro caso, depois de um tempo, o sujeito pode se dar conta de que era infeliz e não sabia. No segundo caso, de que era feliz e não sabia. Uma coisa é o que se diz e outra é o que se sente.

E o dizer, por sua vez, classifica e ordena o sentir. Dizer que se está bem ou mal pode interferir na percepção do que se sente, do que se vive. Como dizemos se estamos ou não bem? Como entendemos o que estamos sentindo e, no final, avaliamos, damos uma nota? É possível falar de felicidade em sentido objetivo?

Em termos comportamentais a coisa parece ficar mais clara e melhor discriminada. Se a vida do sujeito está muito pobre em reforçadores positivos, se há inibição de repertório comportamental e se predominam fuga e esquiva, eis a infelicidade. Se mais agimos em função do dever do que do querer (do prazer de fazer); se não temos ânimo para nada, se a vida se mostra como um grande sacrifício; se o medo impera e nossa ação é sempre impulsionada para evitar o pior: eis a infelicidade.

O que é um bicho infeliz? É um bicho encolhido num canto, sozinho e com medo, muito medo. Digo também sozinho, para enfatizar o bordão: “é impossível ser feliz sozinho”. Na canção de Tom Jobim o sentido mais comum da expressão refere-se a não permanecer sozinho e viver a felicidade no amor. E as pessoas, de modo geral, só compreendem esta felicidade no amor a dois, no amor de cunho erótico. Quero, porém, ressaltar um outro ponto: o da ética. Penso que é impossível ser feliz sozinho no sentido de que se o egoísmo for onipotente e vencer, isso resulta na própria solidão enlouquecedora do poder absoluto. E é neste ponto que a felicidade tem de fazer alguma concessão ao amor. Neste sentido ela não pode ser considerada como bem supremo, pois o amor vem antes. E que espécie de amor vem antes? Aquele que compartilha, o amor da amizade. E assim, amor e felicidade são conceitos que podem ser casados de algum modo. Mas isto foge um pouco ao tema do presente texto.

Voltemos à questão da felicidade enquanto fenômeno objetivo ou subjetivo. É possível então falar em felicidade como algo objetivo, do qual de fato se vive? Penso que sim. Há, como mencionei, fatores concretos ligados à felicidade e pode ser que o sujeito que se diz feliz, talvez não o seja e vice-versa.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI.