Thursday, July 15, 2010

Projeto de lei que proíbe a palmada. Parte 2: O que a Psicologia tem a dizer sobre isso?



Há quatro anos escrevi um pequeno artigo sobre este projeto de lei:

Tal texto era fruto de minha participação em um debate, na Tv Nacional, no Programa Diálogo Brasil. Àquela época levantei algumas questões, tanto de cunho ético quanto jurídico.
Contudo, devo ressaltar, eu ainda tinha pouco conhecimento acerca das contribuições da Análise do Comportamento sobre o tema da punição. É sobre isso que pretendo tratar no presente texto.
Penso que o termo palmada, neste debate, está fetichizado. Ou seja, valorizado em excesso. Fala-se muito, e de modo pouco consistente, acerca das ditas palmadas, como se elas em si, e sozinhas, fossem capazes de produzir danos psicológicos. Quem assim pensa, nos diz o bom senso, está muito equivocado. Não se trata, obviamente, da palmada em si. Trata-se de punições físicas. Um questionamento de cunho ético, repito, é o seguinte: "Se é proibida a punição física para adultos, por que seria permitida para as crianças? Onde fica a dignidade da criança? Por que, neste aspecto, ela não teria o direito de igualdade com os adultos?”.
Em termos legais, muitos também podem questionar: “Uma lei como esta, a qual proíbe que um pai dê uma simples palmada em um filho, não é muito invasiva? Onde ficam as pressupostas garantias legais referentes às liberdades individuais e à privacidade?”.
O debate consistente, como já disse antes, deverá enfrentar estas questões.
Contudo, farei alguns ajustes em minha fala sobre as contribuições da Psicologia. Ela tem algo a dizer sobre esta questão? Sim, com certeza. E esta certeza passei a tê-la depois que comecei a estudar a Análise do Comportamento.
A punição é um conceito que foi e é intensamente pesquisado pela Análise do Comportamento. Desconheço outra área ou abordagem que possua um número tão grande de pesquisas consistentes sobre o tema.
Primeiramente, devemos começar pelo conceito de punição. O senso comum quase sempre o reduz à punição física. E eis aí o grande erro, muito presente nos debates equivocados sobre este projeto de lei. Indo um pouco mais além, poderíamos, em termos bem comuns, assim definir a punição: tudo o que é penoso, desprazeroso, e que é imposto a um determinado sujeito, em função de alguma falta ou erro cometido.
A Análise do Comportamento possui a definição mais objetiva e precisa que conheço: punição é toda consequência aversiva de determinada ação ou comportamento.
Explico melhor. Não se trata simplesmente de faltas ou erros, pois aí já existe um juízo de valor. Todo comportamento do sujeito que tem como consequência algo aversivo, está sendo punido. Se seu filho grita e você lhe dá uma bofetada (a qual ele sente como dolorosa, aversiva), ele está sendo punido. Se você sai na rua e é assaltado, e isto lhe é aversivo, você está sendo punido. Se um pai compara um filho com o outro, e um deles se ressente: está sendo punido. Se o aluno teme ir à lousa, e a professora o obriga: está sendo punido. Se um filho diz algo que ofenda o pai: está punindo-o. Se este pai se comporta como ofendido e triste pelo comentário do filho, e este se culpa pelo ocorrido: está sendo punido pelo comportamento de tristeza que provocou no pai.
Enfim, se há um comportamento e este possui uma consequência aversiva para um determinado sujeito, eis a punição. E ela pode ser tanto positiva quanto negativa. O termo positivo, veja bem, indica acréscimo, presença, adição. E o termo negativo indica retirada, subtração. Esses termos são adotados em seu sentido descritivo, científico, e não moral. Não se trata do positivo ser o bom e o negativo ser o ruim. Pois, se assim o fosse, um resultado de HIV-positivo seria motivo para alegria, não é verdade?
Então, é punido positivamente todo comportamento ao qual é acrescentado uma consequência aversiva. E é punido negativamente todo comportamento em que uma consequência agradável para o sujeito é retirada. Exemplo: o filho diz ao pai algo que o magoa, e o pai, como consequência, deixa de sorrir para o filho: punição negativa. O filho grita e o pai lhe dá uma bofetada: punição positiva (e repare que a punição positiva é mais aversiva, violenta, que a negativa).
Bater nos filhos é uma punição positiva. O comportamento do filho é consequenciado com a apresentação de estímulos aversivos (bater, a surra, as palmadas). Isso se as palmadas forem aversivas para o sujeito em questão. Para alguns é mais doloroso o sermão, a humilhação. Deixar o filho de castigo, sem poder assistir televisão, é uma punição negativa. O comportamento do filho é consequenciado com a retirada de estímulos agradáveis (televisão, no caso). E todo comportamento punido tende a diminuir de frequência.
Ou seja, se a punição é capaz de fazer com que um comportamento indesejável diminua de frequência ou até mesmo se extinga, então ela é eficaz? Sim, para a situação específica em questão e a curto prazo. Você resolve o problema, aquele ali, do momento e (segundo incontáveis dados de pesquisa) cria vários outros. Sim, a punição possui diversos efeitos colaterais indesejáveis. Eis alguns deles abaixo (os quais procurarei explicar com termos bem coloquiais):
1. A produção de respostas emocionais em excesso: o sujeito punido tende a ficar muito alterado emocionalmente frente a situações de punição ou similares ao contexto em que sofreu estimulação aversiva. O medo, em excesso, é totalmente contraproducente. O sujeito treme, gagueja, hesita, tem “brancos”, não consegue se concentrar, etc. Ou seja, fica muito incapaz para aprender. É, de modo geral, paralisante.
2. A inibição de repertório comportamental: o sujeito punido pode generalizar a experiência aversiva para outros contextos, o que vai somente aumentando sua restrição comportamental. Passa a “travar” também em outras situações. Muita punição tende a gerar inibição geral (vergonha e ansiedade frente a diversas situações são alguns exemplos mais notórios). O professor repreende a criança na sala de aula e esta criança pode generalizar a experiência para todo o ambiente escolar. Não custará, em muitos casos, acontecer dela dizer que não gosta mais da escola, de estudar, ou coisa parecida. O professor que não consegue ver seu esforço gratificado, também pode se sentir punido e passar a generalizar para a profissão como um todo: “Detesto ser professor”; “É um martírio...”; “Os alunos são malcriados, sem educação, violentos...”. E isso tem ocorrido muito: os ambientes escolares, principalmente públicos, tem sido muito aversivos, tanto para alunos quanto para professores. A violência contra professores tem aumentado em frequência. Dado extremamente preocupante. Ou seja, professores punidos, logo menos motivados.
3. A punição possui baixo valor informativo. Quando um cão pula no dono e este levanta o joelho para que o animal sinta a dor da pancada no peito, a tendência será o animal deixar de pular nas pessoas. Resolvido o problema de pular nos outros. Mas a questão é a seguinte: o que se aprende ao ensinar alguém a deixar de fazer algo? Com a punição o sujeito deixa de fazer coisas. Não aprende algo novo, a fazer algo novo.
4. A punição é, de modo geral, aleatória, pois o mais eficaz é encontrar as causas, as motivações para um determinado comportamento, e isso a punição não faz. Se a criança gritar e espernear e for punida, se agirá simplesmente sem se saber o que causa este comportamento de birra. As pesquisas demonstram com clareza: o mais eficaz é encontrar os motivos da birra e subtraí-los. E os motivos não são o fato dela não ter podido, por exemplo, tomar sorvete. Não ter podido tomar sorvete é o que, para o senso comum, causa a birra. Para a Análise do Comportamento, os comportamentos são, na grande maioria dos casos, mantidos por suas consequências. A criança faz birra em função da consequência. Se esta consequência for favorável à criança, logo ela tenderá a manter seu comportamento de birra. Ou seja, se fazemos assim ou assado é porque ganhamos algo bom com isso ou evitamos algo ruim. Se o sujeito faz é porque esse comportamento tem ou já teve função em sua vida.
5. Contracontrole: o sujeito pode fazer uma boa discriminação de contextos e somente se comportar do modo desejado nas situações em que o punidor está presente. É o famoso jeitinho. É a famosa arte de somente fazer “o correto” quando o pai ou o chefe estão por perto. Depois volta tudo a ser a mesma porcaria de sempre. Os radares para redução de velocidade no trânsito são os exemplos mais utilizados: a maioria dos motoristas só tira o pé do acelerador quando ele está em cima.
Não continuarei a lista dos efeitos indesejáveis da punição, a qual deve estar obviamente incompleta. Foi somente para dar uma noção básica da coisa. Para muitos fica a seguinte questão: um ambiente ou relações totalmente livres de punição são possíveis? De forma alguma. A punição está sempre presente em nossa vida, seja no ambiente físico, natural, ou nas relações entre as pessoas, nos seus mais sutis detalhes, como pudemos ver em alguns exemplos que dei. Contudo, uma coisa é certa: vale a pena diminui-la, e há comprovadamente procedimentos alternativos a ela. São eles: o reforçamento diferencial, o reforçamento positivo e a extinção, somente para citar os mais importantes.
Falar de cada um deles, contudo, já é tarefa para um outro texto.
A Análise do Comportamento é uma área já bastante desenvolvida e produziu conhecimentos sobre os quais não podemos negar sua utilidade, tanto prática quanto teórica.
Falar sobre dar ou não palmadas em filhos, e deixar de contemplar esses importantes conhecimentos produzidos por esta área de estudo, seria omitir uma história muito relevante dentro da Psicologia.

Monday, July 05, 2010

Deus e a questão do mal

A questão do mal é uma questão clássica em metafísica e filosofia cristã. Uma definição plausível para o mal é concebê-lo como toda e qualquer forma de sofrimento. Se algum ser sofre, eis o mal. Alguns objetarão: não, o mal diz respeito somente aos sofrimentos injustos ou injustificados. Pois “há males que vêm para o bem”, e estes seriam os justificados, os sofrimentos que possuem alguma utilidade. Exemplo: você vai ao dentista, sofre um pouco, mas previne males muito maiores. Mas a grande questão é que há males, sofrimentos, cuja utilidade não compreendemos, e cuja injustiça também é alarmante. E eis aí a questão: se Deus pode tudo e é absolutamente bom, por que permite injustiças incompreensíveis, irracionais e que causam tanto mal? Males inúteis, por que os permite?

Em termos lógicos, há uma resposta básica: não dá pra Deus ser ao mesmo as duas coisas. Ou pode tudo e não é absolutamente bom, ou é absolutamente bom e fraco. Como já vimos no texto anterior, a onipotência é racionalmente impossível, não tem cabimento. Mas, por ora, suponhamos que seja. Se assim o fosse, teríamos de lidar com uma possibilidade absurdamente assustadora: a de um Deus onipotente, absolutamente poderoso e que também possui maldade. Ou seja, pode castigar-nos quando bem quiser, e sem muita justificativa. Essa possibilidade gera muito medo. Imaginem só: um Deus tirânico, caprichoso. Um Deus que também é mau. Um cara absolutamente poderoso e que pode arruinar com sua vida e torná-la um pesadelo sem fim. Deus do céu, esse seria um Deus dos infernos para seus desafetos. Sim, pois se não é absolutamente bom, Ele também teria desafetos.

Esse Deus onipotente, e que não é absolutamente bom, submete a todos, por medo. A crença nele é forçada pelo medo de ser aniquilado. O ato de entrega e fé, é um ato de render-se a algo maior que você e que pode lhe destruir. Lembro do personagem de Tv, o médico Gregory House, assim dizendo aos crentes: “Vocês acreditam em Deus porque temem que Ele os esmague como formiguinhas”. É a fé motivada pelo medo. Pelo medo de desobedecer ao todo poderoso e ser castigado.

Porém, se continuarmos pela linha de raciocínio do texto anterior, a onipotência não tem cabimento. Então, esse ser todo poderoso não existe e nada precisamos temer de infalível e eterno. Assim nossa miséria fica menor, penso eu. Melhor saber que Deus, mesmo que existisse, não poderia tudo. Melhor, muito melhor. Quem pode tudo não dá alternativas a quem não pode nada, a não ser calar a boca, obedecer e fim de papo. Me sinto muito melhor com essa ideia de que ele não pode tudo. Isso me dá muito mais liberdade para continuar pensando e seguindo a trilha da lógica, da sensatez. Permite a liberdade e a responsabilidade, esses dois fundamentos tão importantes da maturidade. Se ele não pode tudo, temos liberdade. Do contrário, estamos eternamente amordaçados.

Como a onipotência é uma impossibilidade, somente nos resta a alternativa mais suave e sensata: ele não pode tudo e é absolutamente bom. É fraco, como nós, porém absolutamente bom.

Mas Deus como fraco e absolutamente bom, ainda nos deixa algumas questões. Como uma entidade absolutamente boa pode ter criado o homem, com todas suas imperfeições e injustiças? Comte-Sponville, no “Pequeno tratado das grandes virtudes”, levanta algumas questões interessantes, em belíssimas e instrutivas passagens (1995, p. 292 – 294):

“Por que Deus iria criar o que quer que seja, se ele mesmo é todo o ser e o todo o bem possíveis? Como acrescentar ser ao Ser infinito? Bem ao Bem absoluto? Criar só tem sentido, nessa lógica da potência, desde que para melhorar, pelo menos um pouco, a situação inicial. Mas é o que Deus, mesmo onipotente, não poderia fazer, pois a situação inicial, sendo o próprio Deus, é absolutamente infinita e perfeita! Alguns imaginam Deus, antes da criação, como insatisfeito consigo, como um aluno exigente que escrevesse, à margem de seu próprio dever ou de sua própria divindade: “Pode fazer melhor”… Mas não: Deus não pode fazer melhor do que ele é, nem mesmo igualmente bem (pois teria então de criar a si mesmo, portanto não criar absolutamente nada: é esse, talvez, o sentido da Trindade). Deus, se quiser criar outra coisa que não ele, isto é, criar, só poderá fazer menos bem que si mesmo. Melhor dizendo, ou pior: Deus, já sendo todo o bem possível e não podendo, por conseguinte, aumentá-lo, só pode criar o mal! Daí este nosso mundo. Mas então: por que cargas d’água tê-lo criado?

Esse problema é tradicional. Mas talvez ninguém o tenha percebido melhor, nem resolvido melhor, se é que se possa fazê-lo, do que Simone Weil. O que é este mundo, pergunta ela, senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)? Deus só pôde criar o mundo retirando-se dele (senão só haveria Deus); ou, se nele se mantém (de outro modo não haveria absolutamente nada, nem mesmo o mundo), é sob a forma da ausência, do segredo, da retirada, como a pegada deixada na areia, na maré baixa, por um passeante desaparecido, única a atestar, mas por um vazio, sua existência e seu desaparecimento… Temos aí uma espécie de panteísmo em negativo, que é a recusa de qualquer panteísmo verdadeiro ou pleno, de qualquer idolatria do mundo ou do real. “Esse mundo enquanto totalmente vazio de Deus é Deus mesmo”, e é por isso que “Deus está ausente, sempre ausente, como indica de resto a famosa prece: “Pai nosso que estás no céu…” Simone Weil leva a expressão a sério, e tira dela todas as conseqüências: “É o Pai que está no céu. Não em outra parte. Se acreditamos ter um Pai aqui na terra, não é ele, é um falso Deus.” Espiritualidade do deserto, que não encontra ou não prega mais que “a formidável ausência, por toda parte presente”, como dizia Alain, a que responde, em sua aluna, esta fórmula surpreendente: “É preciso estar num deserto. Pois aquele que é preciso amar está ausente.” Mas por que essa ausência? Por que essa criação-desaparecimento? Por que esse “bem feito em pedaços e espalhado através do mal”, estando entendido que bem possível já existia (em Deus) e que o mal só existe por essa dispersão do bem, pela ausência de Deus – pelo mundo? “Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a como uma distância”, escreve ainda Simone Weil. Que seja. Mas por que essa distância? E, já que essa distância é o próprio mundo, enquanto ele não é Deus (e ele só pode ser o mundo, evidentemente, desde que não seja Deus), por que o mundo? Por que a criação?

Simone Weil responde: “Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou outra coisa que não o próprio amor e os meios do amor.” Mas esse amor não é um mais de ser, de alegria ou de potência. É exatamente o contrário: é uma diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. O texto mais claro, mais decisivo, é sem dúvida este:

“A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.

As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras.” “

E isso tudo Comte-Sponville escreveu somente para tentar compreender um pouco melhor o amor como ágape (caritas), o amor de Deus, uma das três grandes classificações antigas do amor.

Como minha linha de raciocínio contemplava a ideia de um Deus fraco e absolutamente bom, pretendo encerrar esse texto com ela. Se ele é absolutamente bom, porém fraco, também morre?

Referência:

Comte-Sponville, A. (1995). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.

Sunday, July 04, 2010

Onipotência divina

Muito comum se ouvir que Deus é onipotente, onisciente e onipresente. Acerca da primeira qualidade existe um argumento interessante: se ele é onipotente, se ele pode tudo, pode também construir uma pedra que não dê conta de carregar? E eis o paradoxo: se sim, logo não pode tudo – pois não poderia carregar o que criou. Se não, logo também não pode tudo, pois não é capaz de construir a tal pedra. Logo, concluindo, não é onipotente. Isso nos faz pensar que não existe algo ou alguém onipotente. A onipotência não existe, não tem cabimento. Se Deus existe, não pode tudo. É mais humano do que imaginamos. Também erra e também falha. Logo, pode ser que também nos deva desculpas, em alguma circunstância ou condição. E se ele, em algum momento ou aspecto, nos deve desculpas, o que fazer para perdoá-lo?

O que não é a felicidade

Segundo Comte-Sponville, “a felicidade não é nem a saciedade (a satisfação de todas as nossas propensões), nem a bem-aventurança (uma alegria permanente), nem a beatitude (uma alegria eterna).” Comte-Sponville.

Ou seja, neste sentido, todas estas três concepções acerca do que seja a felicidade são equivocadas. A primeira e a segunda concepção são as mais comuns. São talvez também (vejam a ironia) as que produzem mais infelicidade. Produzem infelicidade, primeiramente, pelo simples fato de serem equivocadas. Assim, geram falsas expectativas, o que, por sua vez, é mais do que suficiente para a ocorrência de alguns desastres e surpresas desagradáveis. Quem não se prepara com perspectivas realistas está sujeito a surpresas desagradáveis.

As concepções de felicidade como a satisfação de todos os nossos desejos ou uma condição de alegria permanente são pouco refletidas, sensatas ou até mesmo infantis. Há o pensamento mágico implícito aí, de que diversas situações complexas podem ser resolvidas com atos simples e instantâneos, os quais dispensam qualquer explicação, esforço ou processo. Em termos psicanalíticos seria a fantasia de retorno ao estado original do recém-nascido que se satisfaz e se ilude acerca de sua própria condição de ser. Tendo suas necessidades satisfeitas, é tomado por sentimentos de onipotência, plenitude e invulnerabilidade (o narcisismo primário). Onde nem mesmo o mundo externo (incluído aí o outro) se configura como perceptível (como outro) e capaz de aniquilá-lo.

Seguindo as pistas dadas por Freud em “O mal-estar na civilização” (1930), podemos dizer que a busca por esse tipo de felicidade é um modo de se apartar da realidade. Acreditando nesta possibilidade absurda, o sujeito nega a realidade que o circunda, e passa a se devotar a uma fantasia infeliz. Trata-se de uma fantasia que abre mão da consciência e instala o sujeito em um terreno sem qualquer sustentação. Sim, constrói castelos no ar. São concepções bastante otimistas acerca do que seja a felicidade. Otimistas e míopes. Otimistas e bem pouco esclarecidas. Aliás, como todo otimismo extremo e equivocado.