Wednesday, March 30, 2011

Algumas formalidades e suas contradições




Quando criança eu tinha uma relação conflitiva com comemorações de aniversário. Nestas ocasiões as pessoas nos abordam e dizem assim: “Parabéns! Muitas felicidades, muitos anos de vida!”.  E eu não entendia nada. Como assim, parabéns? Que mérito tenho eu? O que fiz para receber parabéns? Não fiz nada, nada de relevante. Somente estou vivo e isso é, em boa medida, obra do acaso (?). Parabéns porque ainda estou vivo e isso não é culpa minha? Que absurdo. Eu não percebia minha vida como uma guerra, como uma batalha contra a morte. Então por que os parabéns? Pra que tanta alegria?
Eu achava esse cumprimento meio bobo, meio sem noção, assim como a maior parte dos cumprimentos e artifícios da polidez: “Olá, tudo bem com você?”. Eu não estava interessado em saber como que a pessoa estava. Pra que perguntar isso se não há interesse? Que falsidade é essa? E depois ainda teria, talvez, de ouvir conversa. Esse era meu maior medo: vai que o sujeito começa a reclamar da vida. Só depois fui saber que é gente chata que assim o faz. Você manda um “tudo bem?”, e o cara, sem noção que é, responde e começa a reclamar da vida. Só depois fui saber que a melhor resposta para a pergunta “tudo bem?” é, vejam só o absurdo, a própria pergunta retornando em eco acéfalo: “tudo bem?”.
Mas voltemos ao tema central: o “bendito” aniversário. Ok, recebido o cumprimento de mão (alguém pega na sua mão e elas ficam balançando sozinhas no ar), pode também ter um abraço - ah, e isso pra mim tinha mais sentido. E pode ser também que haja beijos nas bochechas. Sim, isso, beijos: pequenas chupadinhas (ou pseudochupadinhas) discretas que as pessoas em nossa cultura costumam aplicar umas nas outras, as quais, por convenções de polidez, costumam ser nas bochechas ou nas costas das mãos - o que hoje, por sinal, está em desuso.
Nossa, e veja só que coisa engraçada é o beijo como cumprimento. Trata-se de uma imitação barata de uma chupada, de um ato sexual. Eu fico imaginando outros tipos de convenções e reverências solenes a se inspirar em atos sexuais. Fico imaginando que tipo de reverência solene teria como inspiração o movimento dos quadris durante a penetração. O papa chega, beijamos sua mão e também fazemos um sutil movimento com os quadris, o qual toca levemente o corpo, o rosto, mão ou os pés da santidade em nossos genitais, por exemplo. Que interessante.
Mas, pelo amor de Deus, preciso finalizar logo este texto com o tema principal, o aniversário. Dão-nos parabéns, balançam nossa mão no ar, nos envolvem com abraços, e geralmente recebemos beijos nas bochechas - e eu sempre limpava minhas bochechas depois disso. Se minha mãe vivia dizendo pra evitar secreções alheias, a saliva dos outros, principalmente, como fazer com esse monte de beijos? Depois dos beijos, do principal da festa e dos presentes, vinha o ritual derradeiro: cantar parabéns. A letra da música é completamente simplória e infantil. É uma música imbatível que faz a felicidade de muita gente nestas comemorações.
Enfim, congratulações e música tolas são o pretexto para as pessoas se reunirem, comemorar a existência do aniversariante e o amor que se tem por ele, sendo este, por exemplo, até mesmo um animal de estimação. Sopram-se velas e batem-se alegremente palmas bobas, porém no contexto da simples alegria em torno do amor que se tem por alguém. Formalidades são sempre convenções repletas de contradição. Elas contudo não apagam a beleza e a simplicidade de reuniões que celebram ritualisticamente o amor em sua forma mais singela. Coisas que eu não compreendia de modo algum em minha infância cercada de perguntas, mistérios, sonhos e medos abissais.

Tuesday, March 29, 2011

O sentimento

                                                            "Composition VII", Kandinsky, 1913.




O sentimento, muitas vezes, é isto: o que ainda não tem forma; tudo o que vivemos sem perceber; o que nos dá bolos na garganta; a inteligência de nossas vísceras, de nosso corpo; talvez tudo o que é estranho, que diz alguma coisa, mas não sabemos o quê; o que nos move sem palavras ou apesar delas; a voz recolhida e isolada de nossos desejos proibidos; o volume de tudo aquilo que as classificações estabelecidas não puderam categorizar ou tornar visível.


Sunday, March 20, 2011

Woody Allen e o pessimismo


"I feel that life is divided into the horrible and the miserable. That's the two categories. The horrible are like, I don't know, terminal cases, you know, and blind people, crippled. I don't know how they get through life. It's amazing to me. And the miserable is everyone else." (Woody Allen)


Tradução:


Para Woody Allen há dois tipos de vida: a horrível e a miserável. Horrível: pessoas em estado terminal, cegos, aleijados, gente morrendo de fome, à míngua, sozinho, etc (sofrimentos extremos mesmo). O resto é miserável.

Monday, March 07, 2011

Porque uso óculos

Já ouvi muito sobre usar ou não óculos. Costumam me dizer que fico melhor sem eles, que fico mais bonito, que tenho os olhos claros. E sempre me perguntam: por que você não faz cirurgia? Por que não usa lentes de contato? Costumo responder assim: “Uso óculos para que os cegos não me vejam”. E sempre tem alguém que não entende: “Ahn? Não entendi...”. Não perco tempo: “Digo isso para que os surdos não me ouçam”.

Há quem não consiga me apreciar diante da barreira dos óculos. Funcionam como um anteparo que cega alguns. Não me veem além dos óculos. E será que tem mesmo sentido despertar o interesse de quem não está me vendo além dos óculos? Aí faço a piada e alguns continuam sem entender. Ou seja, não me veem além dos óculos e não entendem o que digo, meus gracejos. Então, muitas vezes, vale mais se esconder por detrás dos óculos mesmo.
Há também, veja o disparate, quem diga que sou parecido com o Harry Potter interpretado no cinema por Daniel Radcliffe. Tem cabimento uma coisa dessas? Isso é porque o sujeito está engolindo aparências voláteis, sem ao menos analisá-las, pois tirando-se os óculos deixo de ter qualquer semelhança com tal personagem.
Óculos e cabelo podem influir demais na aparência. Tendem a se misturar com o rosto e a construir uma nova totalidade, uma nova aparência. O rosto passa a ser visto com tudo isso junto, e assim muitos se esquecem da parte que ali está, o rosto sozinho, somente com suas próprias formas. Óculos passam a fazer parte do rosto, e tendemos a identificar o sujeito daquele modo: “ele é alguém com óculos, traz isso em seu jeito de ser, em sua personalidade”.
Pode-se também dizer que se trata de uma ilusão de óptica. Deixamos de ver a parte, o rosto: ficamos cegos para esta parte isolada. Porque percepção é contexto, é sempre percepção de totalidades e nunca de partes isoladas de seu contexto. E assim o rosto de quem usa óculos fica sempre mergulhado em tudo o que o rodeia. E assim me questiono: estamos então mergulhados no fosso do que nos rodeia?