Thursday, October 19, 2017

Quando dar limites não é um ato de amor

O amor se refere, em boa medida, a estar junto, a fazer companhia, de modo constante, tranquilo, a fazer com que o outro se sinta seguro ao nosso lado.

Muitas pessoas fazem objecções a isso, ao dizerem que a firmeza também está relacionada ao amor. Sim, é importante que muitas vezes sejamos firmes quanto aos limites, porém ser firme não é ser duro. Ser firme não é abandonar aquele que ainda não compreende o que está acontecendo. 

Ser firme é estabelecer limites, mas continuar junto, continuar por perto, continuar presente e acessível. É estabelecer limites, porém com o apontamento de alternativas. É estabelecer limites, mas não se fechar para a escuta, para o acolhimento do sofrimento de quem ainda não se adaptou totalmente aos limites que foram impostos.

Há muita confusão da imposição de limites com inflexibilidade, crueldade ou desamor. Muitas pessoas justificam sua crueldade, comodismo ou desamor, dizendo que estão sendo justas ou impondo limites.

A obsessão em saber qual transtorno se tem...

Geralmente não basta saber qual é o nome do transtorno mental que você tem. 

É muito comum as pessoas que estão passando por um período muito difícil em sua vida, com sofrimento psicológico significativo, que nunca procuraram por ajuda profissional em saúde mental, imaginarem que boa parte ou todo seu sofrimento irá se resolver quando souberem qual é o nome do transtorno mental que têm. 

Pensam que nessa área as coisas ocorrem da mesma forma que em qualquer outro tipo de tratamento médico, de saúde. Imaginam que irão a um profissional de saúde mental, geralmente o psiquiatra, e que em uma única consulta ele irá fazer o diagnóstico, prescrever os medicamentos, e que a partir daí tudo irá se resolver rapidamente.

Não, não é assim. Psiquiatras trabalham com hipóteses diagnósticas, as quais terão de ser constantemente reavaliadas. Após a primeira consulta o paciente terá de ser constantemente reavaliado, para ir aos poucos se consolidando um possível diagnóstico do que tem. 

E sair do consultório com a prescrição de alguns medicamentos geralmente não é a solução. Geralmente é necessário um acompanhamento psicológico. 

Os medicamentos psiquiátricos tem função remediativa, de alívio de sintomas. Não atuam nas causas, nos determinantes dos transtornos mentais. Por si só não curam, não produzem a recuperação, a reabilitação da pessoa que está sofrendo.

Para haver recuperação é necessário um processo de investigação que almeje descobrir, em boa medida, quais são os determinantes do sofrimento da pessoa em questão. E esses determinantes, predominantemente e de modo geral, estão na vida da pessoa, em como ela está vivendo, em quais estimulações sofre, em como estão se dando suas interações com o mundo e com outras pessoas.

Esta investigação portanto deve se atentar para fatores tais como, por exemplo: dieta, regime de sono e vigília, postura e expressão corporal, rotina de exercícios físicos e a complexidade das interações com outras pessoas. Uma psicoterapia, ou um processo de orientação psicológica minimamente eficaz, irá se atentar para esses e outros possíveis fatores.

O paciente tem direito a um prognóstico

Uma paciente de 18 anos de idade estava com peritonite e bastante ansiosa:

- Quanto tempo vou ficar aqui?, perguntava, repetidamente, para várias pessoas da equipe.

Perguntou também para mim. Deixei que falasse mais, que se expressasse, para procurar compreender os motivos específicos de sua ansiedade naquele momento. Percebi que essa informação, o prognóstico, era importante para ela, para que pudesse fazer algum planejamento mínimo de como iria enfrentar seu período de internação na UTI. Desse modo, então, eu lhe disse que iria tentar descobrir isso conversando com o médico do plantão.

Por sorte o médico de plantão era alguém com quem eu tinha uma interlocução razoavelmente tranquila. Naquele contexto hostil até que era um cara legal:

- A paciente está muito ansiosa. Precisa saber de seu prognóstico, de mais ou menos quantos tempo ficará internada aqui. Você tem uma ideia de mais ou menos qual será o período dela na UTI?

- Puta que pariu... Isso é falta de rola, só pode ser.

- Veja bem, doutor, ela de fato está muito ansiosa, e creio que ter consciência de mais ou menos quanto tempo irá permanecer na UTI irá ajudá-la a se planejar melhor sobre como irá enfrentar todo o tempo que em que estiver aqui. Fora o fato de que essa informação pode fazer com que ela se acalme. Ela está interpelando várias pessoas da equipe com a mesma questão...

- Isso é falta de resguardo. Vai lá e diz pra ela que ela precisa de resguardo.

Tentei ainda uma vez mais explicar a esse médico que essa informação talvez fosse muito importante para o prosseguimento do acompanhamento dessa paciente. Mas ele de fato estava irredutível nesse posicionamento sarcástico e debochado, o qual senti como profundamente desrespeitoso ao sofrimento daquela pessoa, daquela moça, de 18 anos de idade, que estava se sentindo absurdamente sozinha e angustiada com algo que é geralmente muitíssimo sofrido: a falta de perspectivas, o tempo que não passa, estar presa numa cama em um ambiente onde há excesso de iluminação e sons repetitivos e enlouquecedores dia e noite, com dores pelo corpo e com todo o mal-estar referente à sua condição de saúde - o que, no final das contas, pode muito bem se parecer com uma tortura.

Na verdade fiquei até mesmo com vergonha do que ele estava dizendo. Outras pessoas ouviram, e fiquei até com dificuldade de acreditar que ele estava dizendo aquilo, que estava fazendo aquele tipo de zombaria desumana naquele contexto extremo. 

O que ele estava fazendo era bizarro e repugnante, e eu simplesmente não entendo como insistia em continuar com o mesmo tipo de comportamento, apesar de minhas justificativas técnicas.

Estou narrando-lhes esse episódio, e também aqui pensando que vocês também devem estar chocados, pois a ocorrência de uma situação dessas é praticamente inacreditável. Porém lamento lhes informar, mas foi exatamente isso o que ocorreu. É triste, mas é de fato infelizmente o que aconteceu.

E devo ainda lhes ressaltar que esse médico não era dos menos humanizados e empáticos. Acho que ele estava assim, de certo modo, em um nível mediano em termos de humanização naquele contexto, naquela UTI. Prefiro inclusive pensar que isso que ele disse foi somente um deslize, que isso certamente não refletia a maior parte das ações de cuidado, com o outro, que ele tinha em sua vida profissional no SUS.

Então, em relação ao prognóstico, não pude receber essa informação dele, o qual muito provavelmente não a detinha. Ou seja: ele não sabia e infelizmente, como boa parte dos médicos, em muitas situações, era incapaz de assumir que não sabia alguma coisa. Era melhor desconversar do que revelar que não possuia uma determinada informação.

Então o que fiz foi acessar a internet e tentar encontrar algum artigo científico que mencionasse a questão do prognóstico para peritonite. Em uma fonte confiável encontrei o queria. Estava em uma tabela que discriminava uma série de condições e faixas etárias.

Fui até o referido médico e lhe mostrei essa tabela:

- Posso ir até a paciente e repassar essa informação pra ela?

- Sim, pode!

Como eu lhes disse: esse médico não era dos piores. Não se estressou, nem arranjou confusão comigo porque descobri uma informação da qual ele não tinha conhecimento. Nossa interação cordial não se abalou em função disso!

Transtornos mentais são doenças?

Há, no meio acadêmico, um debate a respeito da classificação dos transtornos mentais, se podem ou não ser considerados doença.

Existem teóricos que defendem que os transtornos mentais são doenças, assim como existem aqueles que defendem que não são. Quem defende que não é doença argumenta que um comportamento específico, considerado inadequado para um determinado padrão sociocultural, não é da mesma natureza, por exemplo, que um fígado ou um rim que não está funcionando bem.

Thomas Szasz, um desses teóricos, inclusive faz uso do exemplo do “escravo fujão”. Durante a escravidão, nos Estados Unidos, houve uma época em que os escravos que frequentemente fugiam eram classificados como doentes. Segundo Thomas Szasz esses escravos tinham o diagnóstico de uma doença mental: drapetomania.

A proposição de Thomas Szasz é impactante. Ela deixa claro que a definição do que é ou não um transtorno mental possui variação sócio-histórico-cultural, que comportamentos fora de um determinado padrão talvez não possam ser considerados doença, porque possuem uma natureza totalmente diferente do que é comumente classificado como doença.

Jerome Wakefield, por sua vez, é um autor que propõe uma aproximação do conceito de transtorno mental ao conceito de doença. Para Wakefield são patológicos os sintomas que produzem disfunções danosas. Então o diagnóstico de transtornos mentais implica em elementos factíveis, que seriam essas disfunções, assim como em elementos valorativos, referentes ao que é desejável ou conveniente a um determinado contexto ou grupo social.

Essas disfunções, de modo geral, seriam danosas para a própria pessoa que as vivencia. Se uma pessoa, por exemplo, está tendo visões de criaturas demoníacas (ou espíritos), as quais outras pessoas não estão tendo; se essas visões vêm comprometendo sua rotina, se isso vem atrapalhando demais a sua vida, impedindo-a de sair de casa, de fazer o que a maioria das pessoas faz para poder sobreviver, e se isso, por exemplo, implica em riscos para a sua vida, logo há uma disfunção que é danosa para a própria pessoa. Logo essa pessoa está doente.

O problema é que, mesmo segundo a proposta de Wakefield, não há como afirmar que transtornos mentais sejam simplesmente doenças pois, mesmo com a existência de disfunções, o elemento valorativo também está sempre presente, influenciando de modo significativo a intensidade e perpetuação dessas disfunções.

Contudo uma série de sintomas disfuncionais são muitas vezes disfuncionais em um determinado contexto social e não em outros. É o que nos mostram claramente áreas como a Antropologia, a Sociologia e a História: o comportamento (sintoma) não funciona, não é útil, em um contexto social específico, em um determinado tipo de sociedade, mas pode funcionar em outros contextos. Visões de espíritos podem atrapalhar bastante alguém que as tem enquanto está dirigindo, porém podem ser concebidas como totalmente adequadas e funcionais no contexto de alguns rituais religiosos. Pessoas com esse tipo de relato, de visão, passam a ser valorizadas nesses contextos, e assim assimiladas com mais facilidade à vida social.

Em termos teóricos não vejo muitos problemas na concepção de que os transtornos mentais são doenças, porque de fato existem elementos que justificam esse tipo de classificação.

Contudo penso que os problemas começam a brotar nos contextos sociais de afirmação desse tipo de classificação. Quando um leigo diz que padece de um transtorno mental acaba geralmente carregando junto as concepções mais tradicionais e simplórias do que seriam as doenças: “é algo que tenho, que me tomou de assalto, que surgiu de repente, sem a minha participação, pois a gente não escolhe quando vai ficar doente...”

E é exatamente nesse ponto, nesse nó, que os transtornos mentais são muito diferentes do que popularmente se concebe como sendo uma doença. Não surgem de repente e não tomam, como uma infecção, uma pessoa de assalto. Possuem um histórico, do qual as pessoas geralmente estão longe de se dar conta, e ficam ainda mais longe quando somente são capazes de pensar que possuem um transtorno. Como se os transtornos fossem simplesmente doenças...

O diagnóstico de transtornos mentais - parte 1

Não existem exames laboratoriais que comprovem a existência da maioria dos transtornos mentais. O diagnóstico é clínico. Ou seja: diz respeito somente à observação que o profissional de saúde, seja ele psiquiatra ou psicólogo, faz. 

Trata-se portanto, geralmente, da observação do comportamento do paciente durante as consultas, durante os atendimentos. É assim que geralmente ocorre, pois as visitas domiciliares, para a observação in loco do comportamento dos pacientes, são bem menos frequentes. Outra fonte de informação é também o relato de familiares ou pessoas que convivem com o paciente. 

Então o profissional de saúde mental geralmente se fia na forma como o paciente relata seus comportamentos e sintomas, assim como também no relato das pessoas que convivem com ele. Ressalto então que é na forma como o paciente relata seus sintomas e comportamentos, porque não basta somente que relate alguns sintomas e comportamentos. Tudo depende também de como o paciente interage com o profissional que está lhe atendendo.

Portanto, como os profissionais de saúde mental ainda dependem muito de seus recursos semiológicos, clínicos, pois não podem contar com exames que atestem mais indicialmente as peculiaridades fisiológicas em questão, nessa área há uma possibilidade maior de ser enganado por um ou outro paciente.

E não existe somente esse risco. As intervenções dos profissionais de saúde mental têm um impacto muito grande na manutenção ou remissão de alguns quadros, de alguns transtornos. Em alguns casos alguns diagnósticos, ou mesmo algumas licenças e atestados, podem, por exemplo, piorar o quadro. 

Os transtornos mentais possuem um tipo de sintoma que é muito peculiar. Não são simplesmente sintomas de tipo ter. São sintomas de tipo ser. Os sintomas psicopatológicos tem uma relação muito íntima com a própria identidade da pessoa. 

Essa peculiaridade inclusive pode até fazer soar estranho que alguém diga que tem algum tipo de transtorno. Porque na verdade essa pessoa não simplesmente tem um determinado transtorno. Ela é, em boa medida, aquilo que está configurado segundo os sintomas de seu transtorno.

Não pretendo me estender muito nesse texto, mas talvez sua mensagem central é a de que a área de saúde mental não é nada fácil. Porque ainda é uma área em construção. Ainda carece de diagnósticos mais objetivos, de definições mais objetivas do que realmente está acontecendo com uma pessoa que apresenta determinados comportamentos, ou relata determinados sinais e sintomas, os quais em tese configurariam um transtorno mental.

A história da psiquiatria e da psicopatologia é repleta de erros, de situações nas quais pessoas foram estigmatizadas, encarceradas, excluídas ou discriminadas em função de diagnósticos, os quais não eram justos ou adequados para com a condição que vivenciavam. Essa situação atualmente é menos frequente, mas ainda é mais comum quando comparada a outros contextos referentes à avaliação da saúde e do bem-estar das pessoas. 

Portanto, o trabalho em saúde mental demanda muita paciência e tolerância ao fracasso, ao sentimento de impotência, a um sentimento de que ainda temos muito o que criar e desenvolver para que essa ciências tenham uma sustentação científica mais sólida. 

Apesar de todas essas dificuldades, o que motiva talvez a maioria dos profissionais nesse campo é, em maior ou menor medida: lidar com a amplitude​ fascinante da diversidade humana, e os numerosos mistérios envolvidos nisso; e poder exercer uma atividade profissional que compreende o valor das interações amistosas e gratificantes entre as pessoas. Obviamente devem existir outros tipos de motivação. Porém o que me chama mais a atenção são essas duas que citei.

Enfim: é difícil, é muito difícil, mas é também muito fascinante e desafiador!

Tuesday, October 17, 2017

Tudo é fisiológico - parte 2

Todos os nossos sentimentos e ações possuem seus correlatos fisiológicos. Alterações fisiológicas ocorrem o tempo todo, e o que vai definir se existe doença, algum tipo de distúrbio, ou transtorno, são convenções. 

Um determinado grupo social, segundo seus interesses e sua estruturação, vai definir se algumas alterações fisiológicas merecem tratamento/acompanhamento por meio do sistema de saúde, por meio de profissionais de saúde, e se também merecem alguns direitos, sejam eles de licença, afastamento do trabalho ou aposentadoria, por exemplo.

Se essas alterações produzem disfunções que venham a ser consideradas incapacitantes, seja para o trabalho ou até mesmo para o convívio social, logo essas alterações passam a ser classificadas como doença, distúrbio ou transtorno.

Então, obviamente, a definição do que seja, por exemplo, um transtorno mental possui um elemento valorativo. E valores, por sua vez, possuem em boa medida variação sócio-histórico-cultural. 

Isso pode nos fazer pensar que esse elemento valorativo retira a objetividade da existência de transtornos mentais. Contudo, além de alterações fisiológicas (cuja detecção e mensuração por meio de exames laboratoriais ainda não é possível para a maioria dos transtornos mentais), existe um elemento bastante objetivo que pode atuar na compreensão ou na classificação mais objetiva do que sejam transtornos mentais: o sofrimento.

E o sofrimento talvez seja o elemento mais objetivo no combate ao relativismo moral, o qual costuma ser utilizado como argumento na defesa de que objetivamente não existiriam transtornos mentais.

Contudo, tanto o sofrimento quanto as alterações fisiológicas ainda não são facilmente ou comumente detectados e mensurados por exames físicos ou de laboratório.

Porém sabemos algumas coisas muito importantes. Sabemos que alterações de pressão arterial, de frequência respiratória e algumas alterações de potencial elétrico na atividade muscular e neurológica são evidências da existência de dor, de sofrimento.

Então creio que em um futuro próximo teremos recursos técnicos para que essas alterações fisiológicas, ou mesmo a magnitude de sofrimento, sejam detectados com mais precisão, podendo-se assim haver uma definição mais precisa do que poderia ser ou não classificado como transtorno mental.

A luta por um cobertor

José, 49 anos de idade, internado na UTI há cerca de um ano, tinha esclerose lateral amiotrófica. Esta é uma doença que pode tranquilamente ser classificada como pior do que câncer. Trata-se de uma doença degenerativa que afeta a parte motora, mas mantém a pessoa consciente até seus últimos dias de vida.

José somente movimentava seus olhos e mesmo assim também com certa dificuldade. Não era capaz nem mesmo de piscar seus olhos voluntariamente. Se lhe pedíssemos, por exemplo, que piscasse por duas vezes, isso não ocorria. José não era capaz de se comunicar piscando os olhos. Mas era capaz de movimentar voluntariamente os olhos para a esquerda e para a direita, sendo que para uma dessas duas direções havia uma dificuldade um pouco maior, o movimento era bem mais lento.

O lado, então, para o qual seu movimento era mais rápido e menos custoso, foi escolhido como o que seria mais utilizado, como o lado da resposta de "sim".

Havia uma tábua de letras, com todo o alfabeto, com a frequência das letras na língua portuguesa, a qual era colocada frente à José, a uma distância visível, para que ele fosse aos poucos apontando as letras com as quais iria formar as palavras que formariam as frases na sua comunicação conosco.

Eu lhe mostrava a tábua de letras, e começava a soletrar uma por uma, esperando pelo movimento rápido de "sim" de seus olhos, o qual sinalizaria que a última letra deveria ser escolhida.

Esse tipo de comunicação aumentou a qualidade de vida de José na interação com os profissionais da UTI, assim como também na interação com qualquer pessoa que viesse lhe visitar.

Certo dia, durante a visita de um de seus filhos, uma técnica de enfermagem veio até o leito e retirou um cobertor que sempre ficava enrolado debaixo dos joelhos de José, e ele imediatamente expressou sua insatisfação, que apesar dos poucos movimentos faciais que lhe restavam, foi uma comunicação rápida e clara de completo desagrado e desconforto.

Tanto eu quanto seu filho tentamos comunicar à técnica de enfermagem que aquele cobertor enrolado debaixo de seus joelhos era um pedido constante dele, para que não fosse removido, pois era significativamente eficaz para a redução de suas dores nas pernas. Somente para se ter uma ideia, a frase mais longa que José já havia ditado para mim, por meio da tábua de letras, era assim:

"Diga à enfermeira, quando vier me trocar, para não se esquecer de colocar um cobertor enrolado debaixo das minhas pernas."

De minha convivência com José, por quase um ano, ali naquele ambiente, percebi o quanto era torturante ficar sem aquele cobertor debaixo das pernas, e padecer indefinidamente das dores que ficavam muito bem demonstradas em suas expressões faciais de sofrimento.

Apesar de parecer algo absolutamente simples, esse tipo de procedimento concedeu a José parcelas importantíssimas de paz, em meio à inundação obscena de sofrimentos que era a sua vida. Encarcerado em seu corpo, e constantemente torturado por uma condição atroz, eram frequentes os pedidos de José para morrer. José sempre nos pedia, aos prantos, para morrer.

Tentamos explicar à técnica de enfermagem da utilidade daquele cobertor enrolado debaixo das pernas de José. Ela contudo não estava muito disposta a nos ouvir, e logo replicou que aquilo que estávamos fazendo era absolutamente errado, impróprio, pois aumentaria as dores e o sofrimento dele.

Tentei lhe explicar que aquele cobertor debaixo das pernas era uma medida que vinha sendo tomada há alguns meses, a pedido do próprio paciente, o qual sempre relatava se sentir melhor daquela forma.

Essa mulher, contudo, não estava com muita paciência para dialogar ou ouvir qualquer pessoa que tivesse concepções um pouco diferentes da dela:

- O senhor está se intrometendo, passando por cima de minhas atribuições! Cuide de seu trabalho que cuido do meu!

- Veja bem, Joana...

- Não lhe dirijo mais a palavra! Não quero saber de conversa com o senhor! Vou direto na chefia, falar o que está acontecendo! O senhor vai se entender é com a chefia!

- Faça isso, por favor!

Quando ela disse que iria até a chefia, ela estava dizendo que iria até o chefe dela, o enfermeiro responsável pelo plantão.

Foi até ele e não poupou o tom agressivo para se referir à minha pessoa.
Deixei que conversasse à vontade com seu chefe, que falasse o que quisesse, inclusive percebendo que ela me acusava de uma série de coisas que, na minha visão, não correspondiam à realidade, não faziam o menor sentido.

Depois de ouvi-la, ele veio até mim. Disse-me que a técnica tinha relatado o problema e me indagou:

- E você, tem o que a dizer sobre isso?

- Não tenho nada a dizer. Acho que seria melhor ouvirmos o paciente.

Acatou minha sugestão e fomos até o leito:

- José, você quer que coloquemos o cobertor de volta, debaixo das suas pernas?

Com os olhos José respondeu repetidamente que sim. Ao ter novamente o cobertor debaixo de suas pernas exibiu uma expressão de profunda satisfação.

Olhava fixamente para mim, movimentando repetidamente os olhos, e eu já sabia o que isso significava. Ele queria que eu pegasse a tábua de letras para falar alguma coisa para mim e para o enfermeiro.

Escolheu, em sequência, as letras O, B e R.

- "Obrigado"? É essa a palavra? É isso, José?

Respondeu que sim, e as lágrimas transbordaram de seus olhos. Seu rosto se enrubesceu e inchou. Seu choro era marcado por uma transformação intensa na aparência e nas expressões do rosto. Era um choro intenso, contagiante, carregado de lágrimas e tremores.

Depois de tanta tensão foi muito difícil não embarcar naquelas lágrimas, não se deixar levar por aquele choro torrencial que lavava um pouco (talvez uma parte bem ínfima) da lama ressecada que rotineiramente corroía sua vida naquela UTI.

Fiz o que pude para me conter, mas não resisti. As lágrimas escorreram de meus olhos. Para não intensificar ainda mais a situação, tentei desviar um pouco o foco daquilo tudo, simulando que estava assistindo um pouco à televisão que ficava ao lado de seu leito.

Quando essa torrente de choro passou, tanto a dele quanto a minha, olhei para ele e me despedi, pois minha escala daquele turno já havia se completado.

Meus olhos estavam inchados, eu estava um pouco constrangido, e queria sair rapidamente dali. Passo rápido, desviando o olhar de quem eu pudesse, para que não percebessem o que havia acontecido.

Contudo não teve jeito, uma paciente acenava para mim, querendo me dizer alguma coisa. Era Ana. Ela estava gradativamente se recuperando dos ferimentos resultantes de uma bala perdida em seu abdômen.

Já estava na UTI há uns 40 dias. Como o projétil atingiu seu intestino grosso, teve peritonite, a qual muitas vezes é uma coisa demorada para se resolver, pois pode resultar em infecção generalizada.

Ana não somente teve infecção generalizada, como ficou desenganada por uma parte da equipe. Muitos acreditavam que ela não resistiria. Além de permanecer por 3 semanas completamente sedada, inconsciente, Ana permaneceu ali na UTI, quase todo esse tempo, com a barriga aberta. Contudo, para que suas vísceras não ficassem expostas ao ar livre, era colocado um plástico por cima, o qual evitava tanto a desidratação quanto a perda de calor. Esse procedimento é chamado de Bolsa de Bogotá.

Para quem não está familiarizado com esse tipo de procedimento, como era o meu caso, observar uma pessoa que está com seu abdômen totalmente aberto, e com as vísceras expostas constantemente, não é uma visão nada agradável.

Além dessa aparência de certo modo assustadora, Ana também teve uma série de complicações clínicas, fazendo com que seu quadro se tornasse gravíssimo em várias ocasiões. Então foi um caso muito difícil, e de uma história muito bonita de superação, sobre a qual não entrarei aqui em detalhes.

Ana me chamou, e eu fui até seu leito saber o que ela queria. Para minha surpresa ela não queria que eu lhe ajudasse com nada:

- Estou vendo que o senhor se emocionou com alguma coisa...

Disse isso com um olhar carinhoso, e em um volume bem baixinho, com a voz bem fraca, de quem estava saindo de um turbilhão de acontecimentos que quase acabaram com sua vida.

Nos entreolhamos por alguns segundos. Tentei retribuir seu carinho com meu olhar. Não lhe disse nada. Somente me despedi:

- Vou indo, Ana, querida... Minha hora já deu. Até mais!

Fui para casa caminhando, me sentindo um pouco anestesiado. Era aquela anestesia, aquele torpor de quem acabou de travar uma grande batalha, de quem levou uma surra. Era final de tarde e o sol se punha, mas era ainda meu primeiro ano naquela UTI. Era ainda o amanhecer de minha jornada em um mundo hostil, no qual eu era e seria muitas vezes classificado como um corpo estranho, como uma pequena e isolada aberração.

Por que sou contrário à pena de morte

Por que sou contrário à pena de morte:

1. O direito à vida se justifica mais coletivamente do que individualmente. Seres sencientes, sociais e dotados de consciência reflexiva, em tese devem ter direito à vida, pois a morte de um indivíduo geralmente provoca intenso sofrimento em outros que com ele convivem em laços de afeto ou dependência. Matar portanto, mesmo que de modo rápido e indolor, nesse contexto, geralmente aumenta a cota de sofrimentos da coletividade. 

2. Ainda é objeto de controvérsia, no meio científico, se a instituição da pena de morte provoca alteração nos índices de criminalidade.

3. Há o risco da condenação de inocentes a uma pena cujos efeitos são irreversíveis.

4. O processo judicial para se decidir se um acusado será condenado costuma ter custos equiparáveis à prisão perpétua.

Portanto é bioética e judicialmente arriscado, economicamente custoso (inviável), além de talvez ser inócuo na diminuição da criminalidade.

Referências:

O direito de viver, matar e morrer:

Sobre possíveis alterações nos índices de criminalidade:

Quanto custa a pena de morte:

Não existe Psicologia Cristã

Não existe Psicologia Cristã. Existem psicólogos que são cristãos, assim como existem psicólogos judeus, protestantes, espíritas, ateus, e das mais variadas perspectivas religiosas. Porque religião não pode se misturar com o trabalho do psicólogo, porque esse profissional irá se defrontar com pessoas que precisam de sua ajuda, as quais possuem também as mais variadas perspectivas religiosas. E essas pessoas precisam ser compreendidas e respeitadas a partir de seus próprios referenciais, de seus próprios contextos de vida. Não precisam de catecismos nem de conversão. Precisam ser aceitas e compreendidas. 

Portanto, afirmar que existe uma abordagem em Psicologia que seria a da Psicologia Cristã, e tentar atuar conforme essa concepção, é deturpar os princípios fundamentais e a atuação da Psicologia de modo profundo. É incorrer toscamente em erro e desrespeito para com as variações individuais e culturais que permeiam a vida humana. É uma postura de negação do outro, de negação da diferença: contrária aos direitos humanos. Atuar segundo essa concepção é atuar de modo intolerante, anticientífico e antiético. É ser um antipsicólogo.

Comunicado do Conselho Federal de Psicologia (CFP) sobre formação em “Psicologia Cristã”:

ATRÁS DA MONTANHA (um romance inacabado, que jamais será publicado)

1.
Antes dos 30 anos de idade eu vivia atrás de uma montanha de sonhos, medos, e o ímpeto de tragar o mundo inteiro de meu desespero em viver para o abismo de querer aproveitar cada segundo da existência em êxtase ou martírio.

Em um dia de outono atravessei boa parte da noite acordado, respirando o silêncio na boca escura do pavor de saber que a vida pode se desfazer a qualquer instante, que a possibilidade de não estarmos mais aqui pode arder no peito, mas isso só faz sentido mesmo ali deitado na cama, parado, a contemplar o terror parado do ar, o fim de tudo, em lampejos de quem somente está mergulhado na ausência das coisas sem vida.

Olhei para o relógio e ainda eram 4:11. Troquei várias vezes de posição, lutando por mais um fiapo de sono, de estórias, de navegação pelo mundo que embalava meus dias. Minha cama macia e quente, e dormir, eram meu refúgio. Era o que ainda me restava para ser feliz.

Mas o sono não vinha. Insistia em não mais aparecer. O que começava a me contaminar naquele instante eram as mesmas divagações de outrora, ideias que nasciam num porto de alegria e naufragavam dias depois, aquém da arrebentação de meus oceanos de sonhos, de meu desejo torto de um dia poder atravessar a montanha de minha dor em existir.

Pensei: preciso voltar a fazer terapia, preciso voltar para o canto escuro de mim mesmo e tatear todas as voltas que o coração, perdido e tonto, pode dar. Preciso do colo de uma mulher que seja paga para me amar, de uma mulher que tenha hora e compromisso em estar comigo, de não ter vergonha em saber - depois de muito quebrar a cabeça e a cara na parede das teimosias do espírito reduzido, míope – que o amor também pode ser comprado na esquina em que cada ser humano pode um dia barganhar suas misérias e feridas.

Assim, pensei: volto pra terapia! Quero deitar meu drama na prosa sem rumo em que me perco quando encontro aquele amor que me dilacera em palavras e devaneios de possui-la no canto quente e suave da vida, escondida ali, no escuro, bem ao pé da montanha em que brota meu desejo em ainda construir uma existência imensa e totalmente fora do ponto em que venho cozinhando minha história e mediocridade.

Pela manhã eu era imensidão a acordar com os pássaros. Durante a tarde era vacuidade e desespero no limite entre olhar o abismo de que tudo tem fim ou a indiferença do consolo em saber que um dia todos seremos esquecidos.

Tinha 27 anos de idade, e há muito tempo carregava no espaço vazio de minha existência escura a constante ideia, em carne viva, de que tanto fazia estar vivo ou morto.

Desde a adolescência não conseguia navegar meus pensamentos de outro modo, longe do porão turvo de ideologias sobre o qual vinha construindo o edifício de minha alma.

Se me dissessem assim: “você vai morrer com um tiro na nuca”. Se me garantissem que a morte fosse instantânea, como o desligamento repentino de tudo, meu sentimento seria marcado também por uma certa indiferença. Provavelmente ficaria muito tenso, temendo o tiro, a dor, a explosão, o impacto arrebatador do projétil. Porém, existencialmente, em relação à vida, nada me colocava em outro ponto além de meus desejos mórbidos.

A infinitude do universo, seus mistérios cintilantes, surdos, escuros ou o absurdo de qualquer realidade inconcebível, somente alimentavam meu desejo de voltar a não existir, como um dia já fora, antes de meu nascimento. A imensidão de tudo tragava meu espírito para a boca dos ímpetos mais animalescos a querer dar cabo de mim mesmo ou lançar a existência aos seus cumes imprevisíveis e incontroláveis. 

Era um homem (apesar de nunca ter me sentido como homem algum) que carregava nos ombros o peso de uma história desprezível, e também a inveja dos mais miseráveis com quem me defrontava nos rincões tristes de saber que a realidade da vida era tão injusta e o sofrimento a experiência primeira de nossa colisão brutal com a existência. 

Meu sentimento era o de que existimos tão pouco na existência de tudo. E existimos demais para nós mesmos. Não me suportava. Não dava conta da luta voraz que explodia em mim, a querer devassar o campo flagelado de minha sanidade.

Eu tinha uma bicicleta velha, tão velha quanto meu desejo de ficar quieto no canto silencioso e quente de uma vida simples no campo, em uma natureza que me abraçasse ou me deixasse morrer sem muito alarde ou ressentimentos. Tinha uma bicicleta de trabalhador braçal, de quem acorda cedo todos os dias para conquistar o mundo com os músculos, sentindo-se útil em algum plano, mesmo que essa utilidade somente seja usada para perpetuar desigualdades ou truculências, mas jamais para se construir castelos no ar.

Peguei minha bicicleta e perfurei o vazio e o silêncio da noite. Era meu desespero a cortar o vento das angústias que sacrificavam a minha paz. Era meu rosto a beijar o ar gélido da noite. Era eu, veloz, louco a pedalar sem fim, para estourar meus pulmões e meu coração, a cortar a madrugada com a navalha de minha asfixia em não saber viver. Que pedalasse até meu último suspiro, que pedalasse para dar um basta em tudo.

Pedalei 7 quilômetros e voltei para casa um pouco mais leve, um pouco mais aliviado. Foi meu desabafo solitário, minha vingança para com a minha própria ruminância já exausta, cansada de sempre quebrar a cara na vidraça de minhas obsessões e cegueiras de espírito. 

Meu horizonte agora era contar os dias em que ainda era possível permanecer, em que ainda era possível levantar e caminhar, mesmo que a passos quase imóveis. Era necessário esperar, esperar mais um pouco e deixar que a pressa em viver culminâncias ficasse calada, que minha juventude fosse também queimada na fogueira de um mundo que sempre trabalhou moendo brilhos, oportunidades e luzes no horizonte, para saber que a vida não vale nada nem tem sentido, mas que também talvez não me restasse outra alternativa a não ser continuar, por amor a quem ainda insistia em me amar.

Pouco a pouco e diariamente minha sanidade era moída pela ideia de que era um estorvo na vida de minha família. No abismo de mim mesmo somente era capaz de me conceber como um erro, como um furo na coerência do mundo. 

Contudo, apesar da falta de horizontes, eu sabia também que precisava trazer um pouco mais de promessas de amor para dentro da casca miúda de meus sonhos, caso não tivesse a sorte de morrer de uma vez.

Não existe filosofia que anestesie e a busca por sentido é a pior das armadilhas diante do sofrimento. Era de certo modo pueril e superprotegido por um histórico de quem se afogava em seu próprio sofrimento ou vivia de sobrevoar o sofrimento alheio. Então constantemente me revoltava com as dores do mundo. Queria inutilmente compreender por que o sofrimento existia. Era demasiadamente dolorosa a percepção de que além de viver a minha própria agonia também sofria pela agonia dos outros.

E pior, sem saber, também padecia de uma autocomiseração ridícula, vergonhosa, a qual constantemente sussurrava seus vereditos:

“Solidão, esse sempre foi o meu nome, minha identidade diante de nunca ter encontrado qualquer reflexo amoroso para o povo faminto de meu rosto no espelho da vida. Vinte e sete anos e sou somente capaz de me conceber como um velho, como alguém que desperdiçou a vida a buscar equivocadamente pelo amor nos lugares errados, nas vilas do desprezo e da dor.”

Então as pessoas sentem inveja de você?

Observo um traço comum em pessoas que pensam e falam frequentemente que os outros sentem inveja delas: são espalhafatosas, bregas. Exageram na maquiagem e, no escândalo para chamar a atenção, acabam virando motivo de piada. Aí saem falando pelos cotovelos que as pessoas estão com inveja.

Mais um sonho com Edu...

Hoje acordei de repente, às 4 da manhã. Minha filha chamava por mim - coisa rara, pois ela acorda todas as manhãs por volta de 5:30, e sempre chama pela mãe. O chamado dela interrompeu um sonho que tenho tido repetidamente, de variadas formas, há quase 20 anos. São sonhos com meu finado irmão, Edu (morto em 1998), cuja data de nascimento é a mesma que de minha filha. Ambos nasceram em 23 de janeiro. Ontem Luisa completou 3 anos e 8 meses e Edu completaria 47 anos e 8 meses. 

São sonhos com personagens e ambientes que se alteram, porém o enredo é sempre o mesmo, desde 1998: Edu repentinamente, e sem qualquer tipo de explicação, retorna para a vida, para o convívio conosco. E no sonho eu sempre estou ali, rondando, preocupado, tenso demais com a possibilidade de que ele possa se matar novamente. 

No sonho dessa noite ele está de volta, porém com uma aparência física muito mais forte: Edu agora tem a forma de um robusto lutador de MMA. Apesar da nova forma, robusta, eu sei que Edu ainda tem uma fragilidade que carrega, com peso, muito peso, em seus olhos verdes azulados, em seu olhar, que pede ajuda pra mim. Estou correndo atrás dele, preocupado. Acabara de fugir de um sujeito, colega, vizinho, que ameaçava bater nele. 

Como dizíamos na infância e adolescência: “Edu abundou”, refugou, fugiu da briga, ficou com medo. E isso era motivo de grande humilhação, de sofrimento moral em nossa infância e adolescência. Era uma escolha muito dura: "abundar" ou correr o risco de ser duramente espancado, o que infelizmente ocorreu uma vez com Edu, ao sofrer uma surra, aos 12 anos, de um adolescente bem maior, com 15 anos de idade. Chegou em casa com o rosto todo machucado. E, pior, a mãe desse adolescente ainda veio até nossa casa para saber quem havia espancado o filho dela o qual, logo depois de espancar Edu, fora espancado por adolescentes que assim o fizeram para defender meu irmão. Justiça pelas próprias mãos, desde a infância: coisa corriqueira na periferia.

Então, voltando ao sonho, Edu agora era um “pitbull” (tinha estrutura física típica de lutadores de MMA), mas morrendo de medo de outro “pitbull”, que o perseguia pelas ruas, e eu também estava ali, seguindo tudo de perto, para lutar com qualquer pitbull que aparecesse. O problema é que Edu já estava longe, bem longe de mim e de todo mundo. Edu correu muito, muito, e se desprendeu de todos nós.

Para fugir desse “pitbull” que estava mais próximo de mim e de todo mundo, Edu correu muito, já não fazia parte do que estava aqui. Edu já estava noutra, em outra parte da cidade, em outra realidade.

Já era noite e a cidade era perigosa. Corri como pude, e também acabei me afastando de todos, em busca de Edu. E não teve jeito, fui parar na periferia de tudo, num buraco, em um local que tinha cheiro de grama, misturada com terra e bosta de cachorro.

Era a periferia de alguma cidade no Haiti. Edu tinha ido buscar socorro, paz, um pouco mais de ar para seu espírito sufocado, em um agitado ritual vodu, o qual acontecia ao ar livre, em um terreno baldio, abandonado, que tinha um cheiro forte de grama, misturada com terra e bosta de cachorro.

Quando cheguei, o ritual já estava no final. Parecia ser o clímax do evento. Os instrumentos de percussão estavam a todo vapor, e minha entrada, clamando por Edu, praticamente chorando, chamou a atenção, quebrando um pouco o ritmo e atrapalhando a concentração de todos que estavam no local.

- Edu...! Edu...! Vamos embora pra casa comigo, por favor...

Perceberam minha chegada, porém ninguém se manifestou, procurou por Edu, ou respondeu ao meu chamado, apontando a direção para onde ele pudesse estar. O ritual, aparentemente caótico e lotado de pessoas e animais, seguiu sua ordem perfeitamente ritmada e louca, em meio às piores atrocidades que podem acometer aos seres vivos que nesse mundo resistem.

Procurei em meio à multidão, em meio ao caos, e não o encontrei. Mas eu sabia que ele estava ali, em busca de ajuda, de paz.

Como cheguei no final do ritual, em poucos minutos já havia acabado e um volume muito grande de pessoas começou a debandar. Fui levado pelo movimento da multidão, pelas ruas de uma cidade em ruínas, quando de repente esse sonho foi interrompido por minha filha chamando por mim.

Quando Edu morreu eu já fazia mestrado aqui na UnB. Ninguém foi capaz de evitar sua morte, nem mesmo eu, que tinha talvez um pouco mais de conhecimento do que a maioria das pessoas para assim poder proceder. 

Hoje tenho uma capacidade para atuar em prevenção ao suicídio que é muitíssimo superior àquela de 20 anos atrás. A própria morte de Edu atuou também, de certo modo, como parte fundamental em meu aprendizado nesse quesito.

Creio que eu jamais deixarei de ter esse sonho, no qual ele retorna, no qual está novamente entre nós. Daqui a seis meses completarão 20 anos que ele se foi, e continuo tendo o mesmo sonho, repetidas vezes. 

Porém hoje sou capaz de ajudar as pessoas como não fui capaz de ajudar meu irmão. Edu de certo modo renasce em cada pessoa a qual sinto que tenho condições de ajudar. Renasce quando percebo a fragilidade nos seres que dependem, de algum modo, de meu profissionalismo ou de meus atos de amor. 

Porque em grande parte o sentido da vida é esse: poder dar e receber amor, poder, na medida do que nos for possível, fazer bem para os seres vivos desse mundo.

Brasília, 24 de setembro de 2017

Os defensores da cura gay querem liberdade para "pesquisar"

“Os defensores das terapias de reversão sexual alegam que têm direito à liberdade científica...”

Se querem liberdade científica que submetam seus projetos de pesquisa a conselhos de ética devidamente regulamentados. Aí, sendo aprovados, não poderão cobrar pagamentos pelas terapias propostas, pois não se cobra por tratamento experimental. Ou então façam esse tipo de tratamento fora do âmbito da Psicologia. Quem determina quais práticas psicológicas têm validade científica são a comunidade científica e o Conselho Federal de Psicologia, e não um juiz ou ações populares.

Os defensores da cura gay mudaram o discurso

Já mudaram o discurso, há muito tempo. Agora muitos defendem que é direito dos gays, que não se aceitam assim, tentarem mudar de orientação, e que os psicólogos que quiserem ajudá-los nessa empreitada (furada) também devem ter esse direito. 

Porém os defensores da "cura gay" não sabem (ou não querem saber) que está comprovado que isso é furada, pois ainda não existe esse tipo de tecnologia. As “curas gays” (tratamentos de reorientação sexual) além de serem comprovadamente ineficazes, tendem a causar mais malefícios do que benefícios. É o que demonstram os resultados de uma força-tarefa realizada pela Associação Americana de Psicologia (APA), a qual fez uma revisão de todas as pesquisas já realizadas sobre o tema.

Resolução da APA sobre o tema: https://goo.gl/jBXo2g

Janaina Paschoal e a carta da filha de Olavo de Carvalho

Janaina Paschoal fala besteiras bizarras com frequência. Faça contra-argumentos às sandices que ela profere. Não precisa ficar mencionando que ela ficou em último lugar em um concurso para professor titular na USP, como um trunfo, como se isso fizesse dela uma incapacitada. Não precisa descer nesse nível e assim perder a razão.

E tem também o caso da filha de Olavo de Carvalho. Ela fez uma carta aberta ao pai, supostamente revelando muitos de seus podres. Também não é necessário o testemunho da filha para perceber e compreender as sandices e gafes intelectuais do velho, convenhamos.

Contudo, se você me disser que não quer ter razão, mas só quer ser feliz, eu até compreendo rs...

Uma história de amor (no CAPS)

Em 2012 e 2013 acompanhei o caso de um paciente, no CAPS, o qual muitas vezes me impressionava. Tratava-se de um homem, com 38 anos, de aparência forte, que talvez pudesse despertar em algumas pessoas até um pouco de temor.

Tinha umas marcas na testa, de quem forçou muito a expressão com preocupação ou com raiva. Essas marcas já estavam congeladas na fronte, de uma forma profunda. Tinha uma aparência forte e rude, e essas marcas de expressão já permanentes e aprofundadas em seu rosto.

Quando o vi pela primeira vez imaginei que fosse alguém que já tivesse algumas passagens pela polícia, com um histórico de violência. Contudo, quando lhe dirigi algumas perguntas, no grupo, seu tom de voz e sua postura entraram em completa contradição com aquela aparência física forte e rude.

Muitas vezes trazia no pescoço um cordão, com uma cruz de madeira de uns 10 centímetros, e uma camiseta representando algum santo católico. Falava bem pausadamente e em um volume muito baixo. Falava para dentro, de modo muito tímido e discreto. É ainda, até hoje, alguém que não se faz ouvir. Aparência de predador e comportamento recolhido, inibido, de presa, de quem sempre foi oprimido, marginalizado, esquecido, negligenciado.

Portador de epilepsia, desde criança, mesmo com estrutura física potencialmente muito forte, é alguém que foi esmagado pelas condições adversas a que foi submetido durante seu percurso pela vida, tanto em nível fisiológico quanto social.

É uma pessoa muito diferente, assim como muitas pessoas que aparecem para serem atendidas, acolhidas ou acompanhadas pelo CAPS.

É alguém que não reage, não agride, não revida. Viu e está vendo a vida passar, e nunca se sentiu forte o suficiente para fazer alguma coisa que pudesse alterar sua condição constantemente precária no contato com as pessoas e com a realidade.

Uma epilepsia, mal cuidada, negligenciada, parece ter destruído ou arruinado com boa parte de seus desejos, projetos, sonhos ou a participação mais ativa que ele pudesse ter tido no mundo e na vida das pessoas com quem convivia.

Veio para Brasília aos 16 anos, do interior da Bahia. Até então morava na roça, na qual começou a trabalhar com menos de 10 anos de idade, ajudando seu pai. Foi uma criança que teve boa parte de seu desenvolvimento psicomotor comprometido tanto pela epilepsia quanto pela pobreza.

Em Brasília enfrentou, durante anos, o subemprego em serviços braçais. Uma vida permeada por crises convulsivas frequentes, privação de sono (insônia) e sua relação com o mundo comprometida nos mais diversos níveis. Uma vida precária e sofrida. Um sofrimento que sempre se expressou pelos cantos invisíveis aos quais foi relegado. Uma vida massacrada pelo peso do mundo e que estava ali agora diante de mim, em um grupo de fala, com sua voz quase inaudível e seu olhar tímido e terno.

Após sua chegada à Brasília permaneceu alguns anos na casa de um de seus irmãos. Contudo chegou um momento em que seu irmão e sua esposa fizeram com que ele saísse dali para morar em outro lugar. Começou a trabalhar (em serviços gerais) e a residir nas dependências de uma igreja católica. E assim permaneceu durante nove anos.

Teve, durante nove anos, uma vida medieval, a vida que muitos monges têm, contudo sem qualquer tipo de título. Uma vida monástica para alguém ao qual nunca foi atribuído o título de monge ou sacerdote. Acordava todos os dias bem cedo e começava seu trabalho de limpeza e arrumação em um templo. E tudo aparentemente de modo solitário. Limpar, arrumar, colocar em ordem, cortar a grama, podar plantas, pintar o que tivesse de ser pintado, ter uma pausa para uma refeição e oração, voltar ao trabalho para mais uma rotina de atividades, mais uma pausa para o jantar e oração, recolhimento, mais uma oração e dormir, ou ter uma noite atormentada, assombrada por convulsões e insônias e os mais diversos fantasmas que podem acometer alguém que tem uma disfunção cerebral profunda.

Uma vida bovina, obediente, recolhida, quieta e invisível. Uma vida que muitos diriam que está sendo profundamente devotada a Deus.

Após nove anos nessa rotina de trabalhar e morar dentro de uma igreja chegou o momento em que isso também se esgotou, e o padre passou a procurar um outro lugar para que ele pudesse morar.

Nove anos antes disso tudo, um menino, de 9 anos de idade, cuja mãe frequentava a igreja, fez amizade com ele. O pai dessa criança havia tido uma queda há pouco mais de um ano (em 1998) e estava em estado vegetativo (ou algo similar isso) no qual permanece até hoje.

Seus pais já estavam separados há algum tempo, antes mesmo dessa queda, porém essa criança sentia muita falta do pai. Esse menino sentia profundamente a falta de um pai. Frequentemente brincava nas proximidades da igreja. Assim acabou conhecendo e fazendo amizade com José (vou chamar meu personagem principal pelo nome fictício de José), e um dia o convidou para irem juntos até sua casa, para que ele apresentasse José à sua mãe.

Chegando em casa abriu a porta e comunicou à mãe que havia trazido um amiguinho para almoçar com eles. Iara saiu da cozinha e foi até a sala para ver quem era a outra criança, o amiguinho de seu filho com qual iriam almoçar, e se deparou com um homem de estrutura forte e aparência rude.

Estranhou um pouco a amizade de seu filho, uma criança de 9 anos, com um homem de aparência rude e forte, o qual ela já havia visto por várias vezes nas dependências da igreja, trabalhando.

Era José. Ela sabia que José era funcionário da igreja, sabia que ele morava dentro da igreja, mas não tinha mais nenhuma informação sobre quem era José.

Iara era uma maranhense, cujo olhar e voz serena despertavam ternura e um sentimento de tranquilidade em quem quer que tivesse contato com ela. Possuía traços indígenas. Era uma pessoa muito amorosa, muito dedicada a crianças e aos seus dois filhos. Gostava de cuidar de crianças, gostava de cuidar de pessoas.

José se transformou em um amigo da família, o qual algumas vezes ia lá com Tiago, filho de Iara, passar algumas horas dividindo uma refeição ou então assistindo a algum programa de televisão.

José sempre foi aquela pessoa muito quieta e passiva, a qual era completamente invisível para a maioria das pessoas desse mundo, porém despertava profundo carinho em algumas outras, tais como Tiago e Iara.

A amizade entre Tiago e José se aprofundou ao ponto de Tiago pedir a José para ser seu pai. José aceitou. Não tinha a mais ninguém nessa vida. Não recebia amor. Não sabia direito o que era isso, e esse sentimento, vindo de uma criança, foi para ele um presente de Deus.

Além de Tiago, Iara também era mãe de Rodrigo, com 7 anos de idade. Agora a família tinha um amigo. Um amigo diferente, que sempre estava presente, com sua existência discreta, com sua presença sutil e constante. José lhes fazia companhia como um bichinho: pouco falava mas estava ali, sempre por perto, em sua fidelidade às pessoas que lhe estenderam a mão no deserto afetivo que vinha sendo sua vida até então.

E assim mais 9 anos se passaram, até que chegou o dia em que o padre também começou a pressionar e a tentar fazer com que José deixasse de morar nas dependências da igreja. José contou para seus amigos o que estava acontecendo, e eles não hesitaram em convidá-lo para ir morar em sua casa.

Agora havia então um novo membro na família. José ainda tinha muitas dificuldades, para dormir ou mesmo a série de dificuldades que costumam acometer as pessoas que têm convulsões frequentes.
José é uma pessoa que não consegue comunicar com facilidade o que está sentindo, principalmente se esse sentimento for raiva. Isola-se em algum canto e começa a chorar compulsivamente e a rasgar as próprias roupas. Adentra um estado que parece ser uma mistura de seus ataques convulsivos com uma crise de angústia com aspectos autísticos.

Contudo, em sua nova família, encontrou quem acolhesse seu sofrimento, quem compreendesse sua dor. Encontrou amor.

José sempre demandou cuidados, mas era um membro amado dessa família, e eles sempre o acompanharam em suas consultas médicas ou no CAPS. 

Iara era quem mais o acompanhava nas consultas, e para tudo o que ele precisasse, em função de suas necessidades, de certo modo, especiais. Sempre se comportou como se fosse sua irmã mais velha. Iara, com seu olhar sereno, e sua fala mansa e pausada, sempre foi uma pessoa naturalmente simpática. É uma mulher que também carrega o peso e a consistência de uma história peculiar e repleta de fatos inusitados. É alguém que aprendeu a esperar, que sabe muito bem o papel do tempo como um obreiro primordial. Iara sabe deixar o tempo passar, fazendo-o contar e ventar a seu favor. Sua vida nunca andou de vento em popa. E muitas vezes andou até para trás. Mas ela aprendeu e recebeu muito mais da vida esperando do que agindo de modo precipitado.

Já se foram 9 anos de convívio, e nesse período José tem dependido bastante de Iara. É praticamente como se fosse seu terceiro filho. José foi adotado por Iara. Essa é a verdade.

Fiquei, contudo, mais de um ano sem vê-los. Há poucos dias, em um plantão noturno, cheguei, peguei minha agenda, e fui observando os nomes e as datas de nascimento para poder pegar os prontuários e iniciar o que estava marcado. Para minha surpresa estava lá o nome de José, o qual identifiquei prontamente. Meu vínculo com ele sempre foi marcado por apreço e simpatia mútuas.

Cheguei à sala de espera e percebi que ele estava com Iara:

- Quanto tempo que não vejo vocês! Como é que estão as coisas?

- Adriano, que bom que marcaram essa consulta com você! Eu sentia falta de nossas conversas. Tanta coisa aconteceu... Eu tive cegueira, devido a diabetes, e perdi completamente a minha visão.

Adentramos o consultório do CAPS, e passei a ouvir o que pude de todos os acontecimentos que se deram desde a última vez em que os vi, assim como também comecei a coletar um pouco mais de seu histórico.

Fiquei surpreso, e achei muito comovente esse novo fato, o fato dela agora estar completamente cega. Fiquei apreensivo, imaginando que a qualidade de vida deles agora estaria em um nível bem mais baixo do que da última vez em que nos vimos.

Sim, em muitos aspectos a vida da família ficou muito mais difícil. Porém, apesar de todas as dificuldades, José agora se encontrava mais estável. Vem, há cerca de dois anos, comparecendo com regularidade às aulas de yoga, as quais são ministradas voluntariamente por um senhor que emigrou da Estônia para o Brasil há cerca de 20 anos: um idealista que investe boa parte de seu tempo na tentativa de difundir a prática de yoga no Distrito Federal.

- Pois é, Adriano, apesar de todas as dificuldades, José vem caminhando com mais estabilidade. Ele tá fazendo yoga. Ele gosta, e faz muito bem pra ele. Mas o problema agora é esse, agora quem precisa de ajuda sou eu. Agora é ele quem tá também cuidando de mim. Agora um cuida do outro...

PS: Os nomes usados nessa narrativa são fictícios, e todos os detalhes que pudessem identificar as pessoas mencionadas foram ocultados. Esse texto tem a autorização e a aprovação das duas pessoas mencionadas para ter sido publicado aqui nesse espaço.