Saturday, November 18, 2017

O otimismo e os cadáveres do Monte Everest

Acabo de ler, aqui pela internet, a seguinte frase: 

“Lembre-se de que todo cadáver, no Monte Everest, já foi um dia uma pessoa altamente motivada.”

Como muitos de vocês sabem, há centenas de corpos de pessoas que morreram durante a escalada, e que estão congelados no Monte Everest.

Essa frase é bastante interessante porque demarca muito bem o limite do entusiasmo, da motivação, do otimismo. Para se ter sucesso não basta estar motivado, entusiasmado, pensando positivo, com vontade de fazer as coisas. É necessário, antes de tudo, estar muito bem treinado. 

Essa frase é interessante, porque é um soco no estômago da ideia de que o otimismo é determinante para alguma coisa nessa vida. O fato é que o otimismo não é determinante de nada. E não é determinante de nada porque ele não é o início. É o fim. Não é causa. É consequência. O otimismo é um efeito de interações favoráveis com o mundo e as pessoas.

As coisas não dão certo porque você está motivado, otimista. Você fica motivado e otimista porque as coisas estão dando certo. É esse o ponto principal, e que deve ser levado em conta. É justamente isso que essa frase impactante nos faz lembrar.

É óbvio que uma pessoa mais motivada irá produzir mais. Mas o ponto principal aqui é o equívoco das pessoas em acreditar que a motivação irá surgir do nada, ou de algumas estimulações que na verdade são bem pouco efetivas para fazer com que os outros fiquem mais motivados. Não adianta ficar falando que as pessoas têm de ser mais otimistas, porque isso é muito pouco efetivo para produzir mais otimismo. Assim como também não faz o menor sentido ficar falando que as pessoas têm de ser mais motivadas.

Aliás, nesse caso, o termo motivação é bem mais adequado que o termo otimismo, pois há uma compreensão melhor de que a motivação precisa ser produzida por meio de melhorias nos ambientes em que as pessoas atuam. Quando se fala em motivação, as pessoas compreendem melhor que ela não depende de pensamentos positivos ou inutilidades similares. Compreendem que é necessário fomentá-la, e que esse fomento preferencialmente ocorra com mudanças efetivas nas interações que as pessoas têm com o mundo e os outros. Se o ambiente é melhor, mais estimulante e acolhedor, a tendência é que as pessoas se sintam mais motivadas.

Quando utilizamos o termo motivação fica mais claro que não depende da própria pessoa para que ela seja mais motivada. Não basta ela pensar que ela tem que ser mais otimista ou mais motivada, porque a motivação não brota de si mesmo. Surge sempre de fora. A mudança, segundo as evidências mais sólidas, sempre se dá de fora para dentro, e não o contrário, como o senso-comum apregoa. 

Acreditar no contrário é acreditar em geração espontânea. É acreditar em falsos agentes. É trocar o determinante pelo seu efeito. É mexer no lugar errado. É não compreender a distinção fundamental entre variáveis dependentes e independentes em relação a nosso comportamento. Serve para quem não quer mudar nada, para depois ainda jogar a culpa nas costas de alguém. Só serve para isso: para manter tudo como está.

Então, finalizando: ninguém tem que ser otimista. As pessoas tem que ser motivadas, por outras pessoas, pelo mundo, e motivadas de modo adequado.

Tive hoje um momento 14 Bis!

Acho que alguém só sabe nadar, de verdade, quando já sabe boiar. E Luisa hoje, em um momento de inspiração, se jogou na água, de costas, na posição de quem sai nadando, ou boiando, e enquanto assim vazia, batendo as perninhas, foi tirando minhas mãos de suas costinhas, pedindo para que eu tirasse as mãos dela, e saiu sozinha nadando, boiando de costas. 

Foi por uma distância curta, mas foi o suficiente para que eu tivesse o sentimento de que hoje eu tive um momento 14 Bis!

O olhar sistêmico

Sim, eu sei que quando alguém está falando de outra pessoa está em boa medida falando de si mesmo. Sei que também é possível conduzir um processo de acompanhamento psicoterápico, com sucesso, somente atendendo essa pessoa, sozinha, a qual pode constantemente se referir a outras pessoas, ou a alguma pessoa especificamente. Ou seja, nesses casos é possível uma psicoterapia não-sistêmica, a qual ouça somente um dos lados, e assim alcance sucesso, eficácia.

Contudo não consigo atualmente conceber que esse tipo de abordagem, não-sistêmica, seja mais prática do que uma abordagem sistêmica quando há referência constante e repetida a alguma pessoa com quem o paciente interage, em uma relação de coabitação, dependência, interdependência ou submissão. 

Em minha prática atual prefiro sugerir ao paciente que convidemos a pessoa sobre quem ele sempre fala (a qual geralmente têm uma relação muito grande com seus sintomas), para que compareça às sessões, para que eu possa conversar com ambos.

Um bom processo de psicoterapia individual pode, aos poucos, ir separando o que é a versão da própria pessoa da versão dos outros, e isso ir se configurando de modo a se produzir mais consciência da realidade, mais lucidez. Uma boa psicoterapia individual pode ir, aos poucos, discriminando esses conteúdos ao ponto do sujeito, nesse processo, ir adquirindo maior consciência sobre si mesmo e o papel dos outros em sua vida.

Contudo, acho que não há nada melhor do que chamar a outra pessoa para conversarmos, os três, juntos, colocando todas as cartas na mesa, ouvindo a todas as versões envolvidas. Porque faz um pouco de sentido o jargão de que existem três versões para para tudo o que ocorre nesse mundo: a minha versão, a sua versão e a realidade. 

Acho importantíssimo todos sentarem juntos e se ouvirem. Acho fundamental esse aspecto de constante negociação, de constante tentativa das pessoas entrarem em acordos de vida que sejam mais saudáveis.

Na minha concepção atual penso, por enquanto, que atuar dessa forma é mais prático e eficaz. Desse modo os resultados começam a se produzir de maneira mais rápida e sólida.

Lições de anatomia

- Pai, qual é o nome de onde sai o cocô?

- Bumbum.

- Não, pai, eu quero saber o nome de lá de dentro do bumbum, do buraquinho de onde sai o cocô...

Fatos inusitados em narrativas de pacientes

Talvez nenhum outro profissional de saúde se dedique de maneira tão intensa e integral aos pacientes quanto o psicólogo.

Já pude me surpreender tanto com o que ouvi de meus pacientes que faz todo o sentido de vez em quando relatar aqui. Então abaixo vou somente pincelar alguns conteúdos de 3 histórias que acompanhei e como elas são aparentemente, ou de fato, surpreendentes:

1. Uma paciente que tivera toda a sua história de vida permeada por uma orientação heterossexual e de repente conheceu uma mulher, a qual se transformou em sua amiga, e depois de um certo tempo as duas se apaixonaram e passaram a viver juntas. Ambas relatavam que eram heterossexuais até o momento em que se conheceram. Essa paciente sempre me dizia que não tinha, que nunca havia sentido atração sexual por outras mulheres. Dizia que era homossexual somente na relação com essa companheira, e que se um dia isso terminasse ela voltaria para sua vida heterossexual. Àquela época, pelo acompanhamento que ela tinha comigo, em inúmeras sessões, minha hipótese era a de que, havendo um rompimento, ela não voltaria exatamente para a mesma vida que tinha antes. A minha hipótese era a de que, após esse relacionamento, ela passaria também a ter uma orientação homossexual em sua vida. Ela passaria a ter então uma orientação mais bissexual, pois as características de sua companheira tenderiam a ser generalizadas para outras mulheres. Mesmo que a fala dela em relação ao que sentia para com outras mulheres, que não a sua companheira, não fizesse o menor sentido, o próprio relato não deixa de ser interessante e fecundo para análise e algumas reflexões.

2. O caso da paciente que tinha muitos episódios de violência física na relação com seu marido, porém a violência nesse caso geralmente produzia mais malefícios e ferimentos para ele e não para ela. Não os acompanhei ao ponto de saber o que sucedeu depois, e não cabe aqui enunciar os motivos para a interrupção da terapia com eles. Porém, à época, havia um risco muito grande de morte para esse rapaz, pois ela já tinha um histórico judicial de sérias tentativas de homicídio. Em um confronto mais sério, mesmo que começado por ele, havia o risco grande dele se ferir gravemente ou morrer. Como era ela a paciente, e não ele, chegamos, eu e ela, juntos, a essa conclusão. Ela estava em vias de deixá-lo e ele, muito ciumento, oferecia riscos, pois em um outro momento de rompimento já havia abordado-a na rua, armado de uma faca. Ela, porém, era maior, mais pesada e mais ágil do que ele, e dessa vez, diante dessa ameaça com uma faca, na rua, ela conseguiu tomar-lhe a faca das mãos, imobilizá-lo, e ainda dar-lhe uma surra. Sempre que havia um confronto físico entre os dois, ela levava a melhor e ele sempre saía todo arrebentado. Segundo ela, havia marcas indeléveis de sangue nas paredes da casa dela, as quais ela havia tentado lavar, mas mesmo assim não se apagavam. E era sangue dele, devido às brigas que haviam tido e ele, como já mencionei, sempre levava a pior. Quem saía sangrando, e bastante machucado, era sempre ele.

3. Tive um paciente alguns anos atrás, no CAPS, que era assim como vários outros: bem parecido com um Forrest Gump da vida. Era uma pessoa muito diferente e com sérias dificuldades de adaptação social. Em seu histórico escolar havia sofrido bullying por diversas vezes. Tinha 19 anos de idade e não tinha mais dente algum na boca. Usava próteses totais em ambas as as arcadas dentárias. Ou seja: usava dentadura tanto na arcada superior quanto na inferior. Tivera uma vida tão sofrida que até mesmo esse era um indicativo de seu sofrimento: perdera todos os dentes antes de completar a maioridade. Era um menino diferente, muito diferente. Tinha uma origem muitíssimo humilde. Foi retirado, por sua tia, de uma roça muitíssimo pobre, ainda pequeno, com menos de 10 anos de idade. Alguns médicos o diagnosticaram como tendo um retardo mental leve. Outros talvez não tenham feito tal diagnóstico porque percebiam o quanto havia sofrido e o quanto a carga enorme de sofrimento de sua vida havia maculado até mesmo parte de sua capacidade intelectual. Mas não se sabia ao certo o quanto esse provável processo era reversível ou não. Trabalhava na construção civil, como peão de obra, e enfrentava, à época, os constantes abusos e loucuras de sua tia. Ela era uma mulher extremamente controladora, a qual acabava enclausurando-o em casa, ou tentando fazer com que ele se transformasse em alguma coisa que jamais se transformaria: alguém que viesse a fazer e completar um curso universitário. Ele era peão de obra e gostava de ser peão de obra. Sonhava em ser carpinteiro, e ter esse posto dentro de uma obra. Era muito bonito acompanhar, testemunhar sua dedicação ao trabalho em um canteiro de obras. Era também muito interessante ver o quanto tinha pureza, ideais elevados, nobres, relacionados principalmente a querer aprender as coisas, a gostar por exemplo de desenhos, animes japoneses. Era tocante observar que, no fundo de sua solidão absurda, tinha sonhos muito nobres. Um paciente que sem dúvida me marcou, assim como vários outros, dos quais não falarei aqui para que esse texto não fique muito longo e entediante...

Inteligência ou habilidades sociais?

Não conheço suficientemente a teoria das inteligências múltiplas e nem sei o quanto é válida. Porém, em um cenário hipotético, se me perguntarem se eu prefiro ter um QI muito acima da média ou uma habilidade social muito acima da média, definitivamente eu não teria dúvida em responder que eu gostaria de ter uma habilidade social acima da média. Porque a capacidade de compreender ou resolver problemas lógicos, ou de poder alcançar mais rapidamente a solução de alguma contenda que demande raciocínio lógico, se isso for elevado, mas não houver a capacidade de se entender com as pessoas ao seu redor, isso será em boa medida até mesmo inútil, porque nossa adaptação e nosso bem-estar psicológico dependem muito mais de nossas habilidades sociais do que de nossa capacidade para a resolução de problemas lógicos.

Felicidade, desigualdade social e suicídio

Quanto maior a desigualdade social, menor o índice de felicidade. Quanto maior o índice de felicidade, maior a taxa de suicídios. E a taxa de suicídios é maior nos países ricos do que nos países pobres.

Eis alguns dados de pesquisa, por enquanto paradoxais, os quais vêm sendo replicados por fontes independentes. 

A impressão que tenho é que altas taxas de suicídio tem uma relação muito maior com a disponibilidade para tal, seja ela obtida por meio de alguns incentivos culturais, assim como por meio até mesmo da disponibilidade de conhecimento, de informações acerca de meios que tornem mais possível o ato suicida.

O suicídio não é proporcional à quantidade de sofrimento porque se assim o fosse muitos animais cometeriam suicídio, e a maioria deles não comente suicídio justamente porque não tem capacidade cognitiva ou os meios disponíveis pra isso.

Então a taxa de suicídios é mais elevada nos países ricos e também os índices de bem-estar psicológico, de felicidade, porque eles têm os meios tanto para terem mais bem-estar psicológico como também para poderem dar cabo de sua própria vida.

Isso sem mencionar também os fatores relacionados ao alto nível de individualismo mais presente em estados ricos do que nos pobres, o qual também tem um papel grande, pois o suicídio é eminentemente um ato solitário e de certo modo bastante relacionado a um tipo específico de isolamento social.

Falta de fé?

Não acho respeitoso dizer que a pessoa tem que ter mais fé, se ela já não está observando alternativas, nem conseguindo resolver, seja lá o que for, com a fé que ela já vem tendo.

Porque, dentre outras coisas, é muito fácil e covarde inverter a situação pra cima de alguém que está fragilizado, fazendo essa pessoa acreditar que ela mesma é a responsável por tudo o que lhe ocorre.

Porque, na verdade, não nos esqueçamos de uma coisa: essa pessoa não tem mais fé porque as coisas não estão dando certo e não o contrário!